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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
[...] Quando a Alice foi atrás do coelho aquilo ainda não era o país das maravilhas; aquilo era só um buraco na terra sem graça nenhuma. Ninguém o tinha pintado de muitas cores nem polido com muito brilho para atrair a Alice. Ninguém fizera dele um irresistível motivo de atração. Ninguém? E deixamos de fora o imaginário de Alice? O imaginário de uma criança que viu um coelho tirar um relógio do bolso e o ouviu falar. As crianças, — as crianças? pensando melhor, as pessoas em geral — parece-me, andam é a ser demasiado convencidas a só valorizarem o gosto do que é, exterior e imediatamente, colorido, movimentado, sonoro, sensorialmente agitado e feitas esquecer de que têm mundos por dentro de si, por dentro das suas cabeças.
Somos nós, os leitores, somos nós com o nosso imaginário que transformamos os livros em histórias. Ao deixar-me escorregar, ao deixar-me cair pelas palavras de um livro acima ou abaixo, simultaneamente eu experimento acionar um mundo paralelo. Sou eu o “projecionista” daquela fita contínua de palavras e simultaneamente o seu espectador e, até, participante, pois nelas me projeto. E com uma liberdade insuperável [...] Valorizamos muito o livro, achamos que, nesta história da leitura, o livro é a personagem mais importante — e, sim, está muito bem, os livros são parte fundamental desta história — mas é muito importante também, é, acima de tudo, importante, valorizar o leitor, fazer com que cada um aprenda a ser leitor, ou seja, esse tal “projecionista”.
Para que a leitura seja, nelas, uma coisa perdurável, têm de ter sido elas, as crianças, a experimentarem, tem de ter sido cada uma delas, com o seu imaginário, a detentora desse livre poder de transformar as letras sobre papel — não esquecer nunca as letras sobre papel — em gente, em cenas, em sonhos, em gargalhadas, em sustos, em histórias, em perguntas, em coisas que nem souberam bem nomear, mas cuja descoberta deixou inscrição profunda. Mais do que inventar essa plétora de estratégias motivadoras, temos de insistir em fazer essa coisa simples e complicada, que tantas vezes também fazemos, que é ler. Ler com eles livros escolhidos com um critério de que não esteja ausente a ideia de que estamos a semear para o futuro. Ler com eles e, pressentindo o momento certo, passarem a serem eles a ler connosco, passarem a serem eles a ler sozinhos. Acompanhá-los de perto e conhecê-los como leitores ou como futuros leitores e dar-lhes o momento de se tornarem leitores.
Isto, que é ler, tem de ser, num dado momento, uma descoberta pessoal e solitária, um encontro íntimo entre alguém e as palavras de um livro, sem mediações e interposições. Este prazer de ler tem que ser descoberto como um prazer solitário, que se multiplica na posterior partilha, sim, mas que para que fique verdadeiramente entranhado, tem de resultar de ser eu a transformar um livro em história. Tenho de aprender, eu, a projetar-me nas palavras e das palavras, fabricando coisas com o meu imaginário a partir das palavras que aprendi a descodificar. Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro. Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. [...]
Maria Almira Soares
(Extratos da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.)
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