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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
The Castle of the Pyrenees, 1959 - Rene Magritte
A leitura dos romances de Saramago pressupõe que nos aventuremos a ficcionar a crença em coisas de que descremos para lá da dúvida razoável.
De facto, para os lermos e enquanto os lemos, ficcionamos respostas afirmativas a perguntas descrentes como, por exemplo, estas: E se a passarola não tivesse sido incapaz de voar desmentindo o que nos conta a História? E se a Península Ibérica fosse uma ilha à deriva, ao invés do que nos diz a Geografia? E se, contra a Lei das probabilidades biológicas, todos ficássemos cegos? E se, Impossível dos impossíveis, a morte parasse? E se, contra toda a Evidência, cada homem não fosse exemplar único? E se, contrariamente ao que rezam os Escritos pessoanos, Ricardo Reis tivesse tido existência real e, após a morte de Pessoa, não tivesse ficado no Brasil?
Tacitamente respondemos-lhes que sim: sim, a passarola voou, e vamos lendo o Memorial do Convento; sim, a Península soltou-se e é ilha à deriva, e vamos lendo a Jangada de Pedra; sim, todos os humanos estão cegos, e vamos lendo o Ensaio sobre a Cegueira; sim, a morte para de matar de vez em quando, e vamos lendo As Intermitências da Morte; sim, cada homem tem uma cópia, e vamos lendo O Homem Duplicado; sim, Ricardo Reis regressou do Brasil depois da morte de Pessoa, e lemos O Ano da Morte de Ricardo Reis. Por que razão respondemos deste modo? Porque só assim a leitura funciona plenamente. Porque ler Saramago exige não apenas a intervalar suspensão da incredulidade, mas o compromisso com um edifício romanesco equilibrado sobre uma interpelação descrente: E se…?.
E se...? é, pois, a palavra-passe para entrarmos nos mundos ficcionais de Saramago que nos pedem que acreditemos na descrença. A sua escrita é a arte de desacreditar a realidade e respetivas versões aprovadas, infamando-as pela suspeita de que faltaram à verdade, prometendo-nos que vamos finalmente descobrir como seriam se tal não fossem e corrigindo-as pela ascensão à beleza de uma recriação descrente.
Se, pelo contrário, nos mantivéssemos fixados nas nossas adquiridas ciência e experiência quanto a realidades e ficções ou num qualquer bom senso positivista desorientado com a ousada ironia que se atreve a desfazer a solidez do acontecido, permaneceríamos antes de Saramago, incapazes de aceder à leitura dos seus romances. É que, lendo-os, as coisas não são bem o que são. Lendo-os, factos não são factos e, contra eles, Saramago aduz belíssimos argumentos. Intenta fantásticos processos à realidade. Em nome de quê? De uma ideia.
Coisa apenas lúdica, jogo, fantasia, interessantíssima mas fechada sobre si mesma? Ornamental? Não. Esta arte, com que Saramago romanceia uma ideia subversiva da condição factual, histórica, documental, é fascínio contemplativo de uma fantasmagoria, sim; mas é, também, revelação de rompimentos radicais com atos tão irrevogáveis como a morte. É a arte, por vezes irritante mas sempre fascinante, de controverter o incontroverso, de reabrir um processo, reestudando as provas, olhando com outro olhar para os indícios, transfigurando os protagonistas, mudando a sentença.
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