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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A estrutura.
O eixo desta narrativa policial não é o crime, é o detetive, o detetive Jaime Ramos. Tudo passa por ele. Tudo nele conflui e deflui dele. Ele que, debruçando-se sobre o processo investigativo, alude várias vezes à peça última e fundamental do puzzle, ele é, nesta narrativa, essa peça, a última e a primeira, a fundamental. Ele é a grelha, a lente, o filtro, o reticulado onde tudo encaixa, vai encaixando, onde cada peça vai pedindo outra e mais outra e mais outra: olhares, expressões, linguagem, referências, idiossincrasias, imaginação, inspiração, memória. Ele, o lugar de escuta e de demorada e melancólica digestão da realidade. Ele, uma mistura, mais disfarçada ou mais franca, de desleixo, de distração, de foco, de obsessão, de filosofia sobre o tempo, sobre a morte. O mítico detetive, a lenda. Ele, a melancolia que, mais ou menos espessa, mais ou menos aguada, é um sentimento de que, mais ou menos, todos bebemos. Uma esponja de vidas absorvendo o real, reorganizando-o, catalogando-o.
A personagem.
A sua personagem principal é o Porto, a melancolia do Porto. O denso tecido do Porto feito de intermináveis enumerações de figuras, de lugares, de histórias, de antepassados, de imagens estereotipadas à tona de profundidades insondáveis. O catálogo. A lista. A lista de verificação da vida. O inventário de vidas. O Porto, ele também, lugar axial de onde emergem e em que mergulham outros lugares mais ou menos longínquos, da Póvoa à Turquia, e outros tempos mais ou menos longínquos, da última trica literária às longínquas raízes judaicas. Para gozo do leitor que conhece bem a cidade e tem o gosto da crónica, o rosto mais ou menos nítido das coisas que estão por trás dos nomes.
O autor.
Uma silhueta sempre presente. Nas entrelinhas, ouço claramente o riso real de Francisco José Viegas: um riso que se desfaz numa nota triste. A presença/ausência do autor é intensa, invasiva, constante. Um humor. O humor também prazenteiro e malandro, que, a brincar, a brincar, fala sobre coisas muito sérias: o amor, a traição, a crueldade, a frustração, a melancolia. «Quem está morto sempre aparece.» A ousadia e o gozo de colar na ficção uma figura indiscutivelmente real: Onésimo Teotónio de Almeida. O gosto do policial intimista, desta vez em meio literário, como quem sorve um fruto suculento cujo sabor conhece. A verrina. As palavras que reverberam o gozo de as achar. Embuçado na sombra de Agustina, essa imbatível fábrica de personagens, de lugares, de histórias. Vendo, muito ao longe, a sombra de Júlio Dinis: «...esses tempos em que os escritores morriam de tuberculose, asma, doenças pulmonares que se tratavam com o ar do mar, uma estada na Madeira, depois de uma viagem acidentada de barco...». Vendo, em Jaime Ramos, o fantasma de Manuel Quintino atormentado a fazer a marginal do Freixo. Porque, afinal, este romance é sobre o Porto, sobre a melancolia do Porto, sobre as árvores do Palácio de Cristal.
E o crime?
O crime dá-se. E tem até uma estrutura bem imaginativa. Móbil? O medo da desonra literária. Mandante? Um escritor medíocre. Assassino? Um turco enigmático e silencioso. Vítima? Uma escritora talentosa e cruel. Álibi perfeito: estar morto.
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