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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 10.11.18

MRS. DALLOWAY

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MRS. DALLOWAY

 

      A escrita literária de Virginia Woolf marca um ponto de viragem fundamental na criação ficcional do século XX.

       Mrs. Dalloway é o primeiro romance em que Virginia Woolf investe muitíssimo no levar à prática das suas inovadoras ideias sobre o encadeamento da narrativa, o tratamento do tempo, a modelação das personagens, a construção da intriga. Enquanto escreve este romance, vai fazendo muitas anotações, nos seus Diários, sobre o processo de escrita em curso, com os seus sobressaltos e os seus momentos de reescrita, até atingir a clarificação total do projeto literário que defende e o ponto de realização que a satisfaz. Woolf vai sempre, também e paralelamente à escrita do romance, fazendo recensões e compondo ensaios em que expõe os princípios das suas inovadoras teorias narrativas. Recusa, porém, que este romance tenha a sua génese na necessidade de demonstrar uma teoria. Nenhum romance nascido de tal intenção é um grande romance. E este, para além de ser um marco na arte de escrever romances, é, só por si, um grande romance.

     Virgínia Woolf recusa a fixidez dos modelos e métodos tradicionais de desenvolver uma história, de apresentar personagens, de estabelecer a marcação do tempo, muito consciente de que a normatividade e a fixidez, nos vários domínios do humano, foram estilhaçadas pela GUERRA e de que, depois dela, a respiração e as aspirações são outras, a vida é outra, mais momentânea, com um ritmo mais acelerado, com outra profundidade e instabilidade. Woolf quer fazer uma ficção liberta da chapa-comum e da ficha caída automaticamente. Quer ser capaz de construir um pulsar mais desorganizado porque mais humano, menos convencional, mas, ainda assim, perfeitamente legível e consequente, o que não é fácil. Interessa-lhe explorar as impressões sempre a fazerem-se e a desfazerem-se, as viagens da memória e a corrente do pensamento não sujeita ao encaixe num contorno previamente definido. Da personagem, ela não fará, à cabeça, um retrato tipo bilhete de identidade, preenchido por elementos obrigatórios e exteriores; a personagem vai-se fazendo a si mesma, fruto dos seus pensamentos, reações, lembranças, emoções, e no confronto com os outros. Constrói-se vivendo a vida que a constrói. É isto que Virginia Woolf faz neste romance.

   Clarissa Dalloway é construída de um modo que pode parecer desmanchado, mas que é ordenado por alguns índices que a contêm: o tempo, a cidade, os laços familiares, as relações sociais, a mentalidade coletiva...

   Desde a abertura do romance, somos imediatamente confrontados com a personagem em ação. Sem qualquer preparação. Age e questiona-se. E questiona. Terá feito as escolhas corretas? Será certa a sua interpretação do que vê? Percebemos que Clarissa não é uma personagem lisa, não está contida nos limites de uma fórmula de «senhora da sociedade londrina» que, desde o título, a define, não em seu próprio nome, mas pelo do casamento, mas mascarada pelo nome do marido. A personagem está em movimento, caminha pelas ruas de Londres. Volta para casa. Prepara a sua festa. Será uma snob que gosta de dar festas, de receber a sociedade londrina? Uma mulher um tanto oca, vazia? Será uma lésbica reprimida? Uma sombra que vive resguardada? Terá a graça regeneradora do mundo no pós-guerra?

   Virginia Woolf andava a ler o Ulisses quando iniciou a escrita deste livro cuja ação, como a do de Joyce, também se passa durante um dia — quarta-feira, 13 de junho de 1923 — a decorrer ao ritmo das horas marcadas pela ressonância das pancadas do Big Ben. O livro de Woolf, porém, tem um título deliberadamente realista e não mítico como o Ulisses. Clarissa não é uma Penélope nem uma Atena, é uma mulher vulgar, num dia vulgar, envergando a sua ‘máscara’ social, para lá da qual, Woolf nos faz ver a sua comovedora humanidade a questionar-se sobre ter ou não ter falhado os seus primeiros sonhos, as suas ambições, sobre ter falhado a vida vivida com paixão.

     No mesmo cenário, move-se Septimus Smith por caminhos que divergem dos de Clarissa até à máxima amplitude do desvio entre a vida e a morte. No mesmo cenário, vários percursos que se cruzam. Cada vida é um caminho mais largo, mais difuso, menos previsível do que simples afirmações rotulares permitiriam. Sobre cada um, não há asserção unívoca que resista.

     Clarissa é uma mulher que ultrapassou os 52 anos de idade, mas a sua memória recondu-la a um outro junho de 1889 em que teve 18 anos e amou Peter Walsh e Saly Seton; mas projeta-se na filha Elizabeth que tem, agora, 18 anos e vive o momento de fazer opções, esse que Clarissa viveu e sobre o qual ainda se questiona. Ela teme a sensação de declínio, a ameaça da mortalidade, hesita na aceitação da perda dos «triunfos da juventude».

     Este romance é veículo de uma consciência social, mas não através de Clarissa. Clarissa pertence à classe dirigente, mas não se questiona neste nível da sua existência nem sustenta a presença de outros temas caros a Virgínia Woolf como a psicose, o suicídio, o fanatismo. São outras personagens, com as quais de um modo aleatório ou causal e consequente Clarissa se cruza, que os sustentam. Sabemos, a partir das notas de conceção do romance, que Woolf quis criticar o sistema social e a classe dirigente, num momento de viragem entre políticos conservadores e trabalhistas. Quis mostrá-lo a funcionar sob um olhar examinador e crítico. As formas literárias convencionais de narrar não conseguiriam captar muita da complexidade deste momento de mudanças várias. Woolf procura e encontra uma nova forma de apanhar a personagem difusa, indecisa, instável, composta de fragmentos, intervalos, evanescências: «Os factos acima do chão são magros; a consciência é tudo.»

       Mrs. Dalloway não é uma entidade fixada e monolítica, mas um instável complexo de impressões e emoções cujo eu se revela a diversos níveis como vinha dizendo a Psicanálise. É feita de sonhos, de memórias, de fantasias, que são tão importantes como as ações. É feita de infância, de experiências primordiais. Na época da escrita deste romance, filósofos e artistas compunham novas e experimentais versões de perceção do real. Henri Bergson teorizava a diferença entre o tempo histórico e o tempo psicológico. Surgia o Cubismo a dilacerar a perspetiva fixa e única. O cinema ensinava os mecanismos de montagem, o close-up, o flashback, o travelling, os cortes súbitos que permitem fazer da personagem uma soma de múltiplas perspetivas acumuladas e de modos como a diversidade dos outros a percebe. Assim, é dada ao leitor a oportunidade de ser compassivo e não decisor judicativo: até a dominadora e obtusa Lady Bruton se torna mais humana, quando entramos nos seus sonhos de ser eternamente a pequena maria-rapaz da sua infância.

   Virginia Woolf constrói uma Clarissa para a qual os acontecimentos exteriores são significativos principalmente pelo modo como, a partir de si, libertam cenários íntimos; são importantes pelo seu impacto na consciência individual que os amplia em duração e sentido. São as memórias semi-enterradas e as interpretações do real, vogando num fluxo de associações aleatórias, que vão criando os estados de espírito. Através de uma única imagem — como é o caso do carro em Bond Street ou do avião escrevendo nos céus de Londres — é possível captar, sem delongas narrativas e descritivas, o caos que vai habitando as mentes singulares.

   E tudo tende para uma exata contradição final onde se cruzam a festa e a morte.

   Mrs. Dalloway termina como começa: um tributo à resistência, à vida, à alegria.

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por Maria Almira Soares às 17:45



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