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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 28.10.19

NO DIA DAS BIBLIOTECAS

 

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Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-na emprestada a quem a tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje, ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação. Ser leitor é: gostar de estar sossegado e só esforçar os olhos e a cabeça para ficar a saber coisas que, magicamente, sem pincéis nem tinta, têm cor e forma e, sem projector, têm movimento; é ser-se curioso, e gostar de seguir roteiros e de encontrar respostas; é ser infantil na abertura à fantasia e adulto no jogo dos sonhos escondidos; é o gosto da intriga, do enredo, da novidade e da descoberta; é o gosto dos nomes, das referências, das frases bem-dizentes; o gosto das palavras bem-soantes; o gosto da fuga, de ultrapassar o real pela fuga e lhe fazer uma espera mais à frente, já ficticiamente senhor das suas estratégias. Ideal é que o ensino da técnica garanta a realização do desejo. Mas o desejo, esse, não se ensina. Provoca-se. Desperta-se. Pro­voca-se a curiosidade, proporciona-se o agrado com o efeito de surpresa. Faz-se com que ler seja acontecer. A escola pode ser um lugar onde, enquanto se ensina o ler, se desperta a fantasia. O tempo e o modo de ler podem ser vividos na escola como quem aviva um desejo, um fogo que velaremos ao abrigo das coisas da vida que tendem a apagá-lo, fazendo dos livros um espaço pessoal de liberdade, aprendendo que ninguém está no espaço incolor em que as histórias que lemos se tornam reais, senão nós. Só se quisermos e quando quisermos o partilhamos. A escola pode ensi­nar que ler é uma porta que se abre, um acesso, uma entrada; que, quando alguém abre um livro e se põe a ler, como que fica intocável. Mas não só a escola. Desejável é que aqueles que parecem geneticamente mais dados à leitura contrariem a tendência social para ler pouco, peguem ostensivamente em livros, jun­tem dinheiro para comprar livros, a prestações, se for preciso, como fazem com outros bens; em segredo primeiro, se tiverem vergonha, e, depois, à vista de todos, causem o escândalo da leitura, numa sociedade que não lê, e, depois, talvez, o respeito.
   Se não há um gene da leitura reconhecível num exame médico, que se garanta, pelo menos, meios de transmissão social: a escola e todos os que gostam de ler. Que ninguém diga: quem não quer ler que não leia, colocando no mesmo leque de opções coisas ontologicamente distintas. Pasmoso é o esforço insano que fazem as escolas para desenvolverem práticas, às vezes espantosas, e espantoso é que ninguém se lembre da hipótese de haver nelas coisas como, por exemplo, a Leitura ao Fim da Tarde. Ler já foi uma arma da adolescência. Esta perdeu-a, mas deve re­cuperá-la. A leitura já foi um espaço de mudez-surdez, tão caro aos adolescentes, habitado por sonhos e ousadias; era um espaço de imobilidade pesada, atirada contra a presteza e prontidão dos adultos; era um espaço de atraso e de demora, de desculpa, de teimosia, de ultrapassagem subterrânea dos legítimos superiores. Hoje, o adolescente não suspeita de quão estrategicamente útil lhe poderia ser a leitura, e foge a desgastar-se noutras andanças. Há um vazio imenso a fingir que é movimento e alta voz. Ler não é uma actividade essencialmente grupal, mas garante ao grupo a existência do indivíduo. Um grupo não é só uma coincidência de gente na mesma escola, na mesma rua, na mesma praia, na mesma discoteca. Não é apenas uma simultaneidade. No equilíbrio das forças que sustentam um grupo tem de haver um lugar para a distância, para a pertença a si próprio. A lei­tura é um elo que nos solda a alguma coisa de sólido que vai havendo em nós, enquanto a diversidade nos interpela, ao som de uma voz pública que nos pretende ditar, como se fôssemos só uma folha branca onde nos vão inscrevendo. Porque ler é também rejeitar, revelar, identificar, abrir, descobrir. É muito provável que não haja o gene da leitura, mas tem de haver a educação para a leitura, como imperativo de uma educação humanista. 

 

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por Maria Almira Soares às 16:52


2 comentários

De cheia a 28.10.2019 às 19:49

Que maravilha! Muitos parabéns.

De Almira Soares a 28.10.2019 às 20:10

Obrigada!

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