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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Se Pessoa deixou Reis no Brasil, é possível o seu regresso. Inventa-se o regresso, fecundo motivo literário. Se Pessoa escreveu, nas odes de Reis, um nome de mulher, Lídia, é possível a mulher. Inventa-se a mulher, fecundo motivo literário. Tão fecundo que é multiplicável: as mulheres. Fernando Pessoa também escreveu, nas odes de Reis, o nome de Marcenda. Se Pessoa deu a Reis um sentido doutrinário, é possível um olhar sobre a realidade. Desenvolve-se o olhar de Reis sobre o mundo. E inventa-se o lugar de transitividade desse olhar: Portugal, Lisboa, 1936. E inventa-se ainda, para melhor execução desse exercício de relação com o “espetáculo do mundo”, um Reis transitivo. Inventam-se caminhos, coisa profundamente literária. E fantasticamente fecunda: caminham os pés, caminham os olhos, caminham as mãos, caminham os pensamentos e as emoções, numa certa geografia física, numa certa geografia humana, na geografia interior do desejo. Regresso, mulher(es), olhar, caminhos, pensamentos, emoções: tudo a construir-se num plano de elaboração narrativa cuja primeira pedra, o primeiro se, o do regresso, se vai desdobrando a partir de uma rede de múltiplas encruzilhadas, umas de maior angular, outras mais reticulares, numa rede microssemântica, por vezes quase invisível a olho nu, que alimenta o corpo do animal literário. Há ses bem visíveis, literais, grafados, legíveis, mas há, por trás, um poderoso silêncio criador, habitado por outras audácias, ses implícitos que se avolumam como o nácar à volta do grão de areia na escuridão da ostra, suspeitas intromissões da matriz autoral: clandestino, Saramago também passeia pela sua Lisboa de Reis. Só perante o real se pode lançar um se ameaçador, porque só o real pode ser destruído; só a morte permite a ressurreição; só a verdade permite a mentira; só os acontecimentos permitem a ficção. Por isso, a rede de invenções se alicerça numa base factual feita do real, da morte, da verdade, dos acontecimentos históricos. E onde vivem ainda o real, a morte, a verdade, os acontecimentos do ano de 1936? Na leitura incessante dos jornais da época. Explícita ou implícita fonte documental, a leitura é uma outra transitividade que vai permitindo à ficção respirar e, por vezes até, enlouquecer: a leitura do jornal, da carta, do romance, dos poemas, vai dando fôlego à corrente ficcional, porque gera encruzilhadas que tecem o espanto, a concordância, a discordância, a tristeza, a alegria, a dor, a perplexidade, o medo, a indiferença, a prosápia… coisas com as quais se faz literatura. Neste romance, só Lisboa e Pessoa não são de papel, mas Pessoa está morto e Lisboa está moribunda. Reanima-se Pessoa pela metáfora e, pela metáfora, mantém-se Lisboa na translucidez da sua agonia, romanesca transfusão de sentidos, densamente habitada pela ironia. E, já que a metáfora e a ironia são coisas literárias, aí temos um Pessoa e uma Lisboa fantasmáticos. Fantasmas que, ainda assim, vivem. Onde e como, entre quem, vivem estes fantasmas? Sobre Lisboa, está sentado um sapo, horrendo e engravatado, que a respirar não deixa, que a não deixa pulsar livremente. Sobre Pessoa, hipotecado à morte, pende a aprazada sentença do fim. Para o resto, vai-se à gaveta dos recortes: os seres de papel, habitantes de jornais antigos, de poemas antigos, Reis, Lídia, Marcenda… E, da leitura, se faz literatura. Da melhor. Não há melhor Lisboa moribunda do que a que aqui se faz. Não há Pessoa mais fugidio e impróprio (ou seja autêntico) do que o que aqui se lê. E como se faz tal transferência? Faz-se, sobretudo, com aquela coisa que era costume dizer-se da episódica falta de obediência gramatical de Camões: — Liberdades poéticas! Que magnífica liberdade poética é O ano da morte de Ricardo Reis!
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