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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sexta-feira, 03.01.20

O CORAÇÃO DAS TREVAS de JOSEPH CONRAD

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      Ouvir o título de um livro, antes de partirmos para a sua leitura, é antecipar inevitavelmente um sentido. Quando ouvimos um título tão forte como este, O Coração das Trevas, o mais certo é imaginarmos que, através da leitura, vamos penetrar num lugar tenebroso, lendo, em «coração», um centro recôndito, núcleo e motor. Não sabemos ainda que trevas serão essas. Mas, se, por hipótese, já tivermos ouvido falar de Joseph Conrad, talvez nos ponhamos a adivinhar algum lugar, simultaneamente terrível e de difícil acesso, até onde a sua vida e o seu espírito aventureiros tenham chegado.

     Isto será antes da leitura.

   Por outro lado, depois de termos lido o livro, talvez nos contentemos em pensar que ele nos descerrou um lugar oculto num continente selvagem, uma África perigosa, difícil, desumana, polissemicamente negra, que esconde ações/sentimentos terríveis, crueldades, excessos, a desumanidade da ganância. Talvez tomemos este livro como denúncia política de crimes contra a humanidade, numa mistura de poder e sangue, aumentando, assim, o valor metafórico do título. E já não é pequena coisa que o façamos.

     Mas, se já tivermos lido que o marinheiro Conrad, nas suas viagens narradas, ultrapassa o exotismo geográfico, para penetrar em paisagens comportamentais insuspeitadas, expostas pelo ser humano quando posto em situação, talvez pensemos na impossível unicidade de ser igual a si próprio em quaisquer tempos e lugares, no incumprimento, no intervalo, na falha, na mentira, presentes em personagens de «la tragédie de l’inexactitude», «des colons qui, parvenus au coeur des tenèbres, perdent pied et s’enfoncent dans une violence sans limites» de que Conrad, nos seus livros, também trata.

     Será então que, regressados ao título, ao Coração das Trevas, haveremos de perceber que o abismo mais profundo e mais negro que nos desvenda é entre:

— «O horror! O horror!» — últimas palavras de Kurtz

e

«A última palavra que ele pronunciou foi… o seu nome.» — a mentira de Marlow à «prometida».

      Então, haveremos de pensar que o abismo não reside no fundo quase inacessível e perigoso de territórios perdidos no centro latejante do coração de África. O abismo abre-se, espantoso e nefando, entre a cidade branca, a «cidade-túmulo» do norte da Europa e os confins da África, terra tumular de vidas de pouco ou nenhum preço. O profundo intervalo moral, a funda mentira, o covarde incumprimento!

     A fatal incoincidência entre o Mr. Kurtz europeu e o Mr. Kurtz em África!

     É preciso subir o rio Congo para descobrir que as trevas estão no coração do homem: a tenebrosa paisagem do coração do homem. E, se assim for, se tivermos chegado até aqui, talvez nos lembremos ainda das palavras de Amin Malouf: «Contrariamente à ideia preconcebida, o erro secular das potências europeias não foi terem querido impor os seus valores ao resto do mundo, mas muito exatamente o inverso: terem renunciado constantemente a respeitar os seus próprios valores nas suas relações com os povos dominados. Enquanto este equívoco não for resolvido, corremos o risco de voltar a cair nos mesmos erros.»
       Deste modo, não leremos, neste livro, apenas a difícil e perigosa viagem de Marlow ao coração das trevas, mas a entrada reflexiva nas trevas de um coração.

      Desde o princípio somos avisados de que as não devemos procurar apenas lá na longínqua e selvagem África:

«— E este também foi um dos lugares negros da terra — disse, de súbito, Marlow.», ancorado no londrino Tamisa. «Mas aqui havia trevas ontem.»; «frio, nevoeiro, tempestades, doenças, exílio e morte»; «a selvajaria absoluta se cerrou em seu redor».

     Por isso, haveremos ainda de pensar que o abismo não é só entre dois rios, o Tamisa, europeu, navegável, cosmopolita, aberto ao mundo e o Congo, africano, difícil, fechado entre os muros da floresta imensa e densa, sobre o qual, abismo, esta narrativa de Marlow é a ponte possível: há falhas sobre as quais só as palavras podem ser a ponte. Haveremos de pensar que o abismo, a falha, o desvio, não é só o do tempo, esse desencontro cosmicamente, cronicamente, irresolúvel; entre uma Britânia bárbara, esmagada pelo Império Romano, e uma África inocentemente selvagem, esmagada pelo comércio do marfim. Não é só de um olhar outrora-agora, de algum modo pessoano, que se trata; não é apenas à travessia histórica do caminho das trevas pelo coração do homem que somos conduzidos.

      Se avançarmos ainda um pouco mais por este livro acima, passada a fascinante narrativa de viagens, passada a empolgante história de marinheiros aventureiros, passada a certeira e emocionada denúncia política, haveremos de chegar finalmente «ao meio do incompreensível, detestável mas que ao mesmo tempo possui um fascínio que se exerce sobre ele. O fascínio do abominável».

       Chegaremos a Kurtz, a essa experiência inesquecível que reclama a narrativa. Ao fundo negrume, ao latejamento, à pulsação, ao descontrolo, à loucura, como um quase-deus negativo, algo de demoníaco, à descoberta/revelação de uma fonte de mal, de uma experiência-limite do humano. Chegaremos à alma.

 

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por Maria Almira Soares às 16:29



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