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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 19.01.15

O ESCRITO

 

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O escrito, ou seja, o que é para ser lido, não se gera espontânea e primariamente da momentânea vontade ou necessidade comunicativa, mas deriva da opção pela permanência. Scribere é «gravar», significado que absorve ainda as ideias de «pesar sobre», de «conservar, perpetuar-se» e até a de «transferir». Esta escolha da permanência que seleciona o escrito é simétrica da leitura como escolha por parte de um sujeito leitor que, ao ler, escolhe o que pretende gravar, aplica critérios de atribuição de peso, admite contribuir para a perpetuação, quer ser elo de uma transferência. Por isso, a qualidade da leitura está sujeita à tensão instabilidade/permanência do escrito que lê. Há escritos precários que se gastam na sua funcionalidade, correlatos de uma leitura com baixa gravidade que não se inscreve no leitor: a leitura utilitária. O escrito literário, de outro modo, desprovido de função utilitária, necessita de um cometimento um tanto misterioso do leitor para a efetivação da sua permanência. O leitor do literário não é mero mandatário do destino de um texto, simples destinatário, mas um cúmplice autónomo da sua vontade. A leitura não cria capital cultural através de um voluntarismo apassivante e evasivo do leitor; só o faz quando o leitor sabe exigir responsabilidade às palavras que, pela leitura, se intrometem no seu real. Um dos índices da capacidade cultural do escrito é a sua literariedade. Ao escrito literário concedemos, enquanto seus leitores, um grau de permanência considerável, sabendo reconhecer-lhe e exigir-lhe o poder de, com a nossa cumplicidade, fazer, no real, uma abertura para o imaginário. A leitura do escrito literário é particularmente exigente de uma implicação causativa do leitor e, por isso, tem um particular efeito de permanência transformadora do humano. Sobre a natureza do texto literário, diz Roland Barthes, na sua Lição inaugural da cadeira de Semiologia, proferida em circunstâncias, que ele próprio refere como «quando neste momento o ensino das Letras se encontra despedaçado até ao cansaço pelas pressões da exigência tecnocrática por um lado, e pelo desejo revolucionário dos estudantes por outro»:

     «Esta trapaça salutar, esta esquivança, este logro magnífico que permite conhecer a língua no exterior do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, é aquilo a que eu chamo literatura [...]»

São palavras, estas, sustentadoras de uma definição do literário como a possibilidade de a língua conjurar o seu poder de invenção, expondo a máxima força da sua natural capacidade de se engendrar diferente em si mesma, de se dar a saber sob metamorfoses reveladoras de todo o seu poder de ser arte. A criação literária que tem a natureza do «fingimento» no sentido pessoano do termo, a invenção de si mesmo como outro que o tomar literário das palavras cria, permite, através de um processo transfigurador que encerra ao mesmo tempo a chave do regresso ao autor, a expressão de uma intimidade.

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por Maria Almira Soares às 11:59


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