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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Eliseu Visconti
Era uma vez um Menino que, sem ninguém dar por isso, começava a ser leitor. Não tinha ainda idade nem vontade de aprender a ler. Para o Menino, o melhor da vida era brincar. E brincar era simultaneamente sentir. Sentir cores, luzes, cheiros, gestos, movimentos, texturas e tudo isso misturado. Brincar sob sol aberto e chão coberto de ervas, flores, árvores... ar livre. O Menino começava a ser um leitor que ainda não lia. Sob a bênção do poeta que nos não larga, poderemos chamar-lhe um leitor a haver. Nada sabia de letras, mas, em cada momento de vida, crescia em imaginário. Adorava o faz-de-conta. E nesse seu fazer-de-conta tudo no seu mundo se transformava em situações inventadas cheias de palavras e de coisas postas e repostas sem limitações de realidade. Nesse seu fazer-de-conta as coisas e coisinhas que lhe vinham à mão transformavam-se magicamente em tudo o que ele queria, em tudo o que ele via por uns olhos de desejo de alegria: fosse um pedacinho de papel rasgado de jornal amarelecido perdido no fundo de uma gaveta, sobre o qual, sem nada entender do que lá se dizia, saboreava palavras misteriosas que ouvira sem as entender também; fosse uma bela e perfeita folha de videira que punha a boiar no rego da água e era já um barco, uma jangada, um peixe...; fosse uma pedra, arredondada pelo tropeço dos tamancos que faziam os caminhos, atirada aos ares e logo transformada num belo rasgão do céu azul. O Menino pequenino não lia, não sabia de livros, nem sabia se outras pessoas — dentre os pais, dentre os avós, dentre os irmãos — tinham livros. Mas sabia de histórias: das que inventava e das que ouvia. Todos, à sua volta, estavam sempre a contar histórias uns aos outros: infelicidades, desejos, segredos, espantos, maldades, notícias boas, notícias más, partidas e regressos, alegrias, viagens, mortes e vidas. E ele ouvia muito bem. Não as entendia, essas histórias que enchiam o mundo em volta. Não as entendia, mas, pelo modo como os corpos e seus gestos e as vozes e suas demoras as contavam, pareciam-lhe ser saborosas. Sabores doces e ácidos, picantes e brandos que, no Menino, iam plantando o leitor a haver. Saboreava a mestria das vozes dos outros e ficava a saber, ainda que imperfeitamente, de histórias e mesmo de réstias de palavras que não chegavam a formar nenhuma história, mas eram boas de sentir na boca e nos ouvidos.
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