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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Um dia, quando o meu pai, durante o jantar, disse «chega-me o salário», eu levantei para ele uns olhos risonhos e ligeiramente críticos, mas nem me passou pela cabeça até onde este microepisódio me poderia levar.
A minha mãe riu-se e chegou-lhe o saleiro. Ele sacudiu a cabeça como quem apaga um erro momentâneo. Mas eu fiquei com o «saleiro» e o «salário» entalados na minha indomável vontade de decifrar os mistérios das palavras. Estas duas eram tão parecidas! Porque seriam assim tão parecidas, se significavam coisas tão diferentes!? Nesse dia à noite, enquanto não adormecia, pus-me a inventar uma brincadeira com elas, assim como se fossem duas marionetas dum teatro de fantoches. Começavam as duas às turras uma na outra e dizia o Salário para o Saleiro:
— Mas que abuso de confiança! Tu não és salário. Tu és saleiro. Salário sou eu.
— Que é que queres, pá? Ora, agora! Vires pedir-me meças a mim, que não tive culpa nenhuma! Quem me chamou salário foi o pai do Luís.
— Olha que tu tem cuidado Saleirinho refilão! Olha que eu sou uma palavra de estirpe muito antiga.
— Qual estirpe nem meia estirpe! Sei lá eu o que é estirpe!
— Sou uma palavra muito antiga e de muito boas famílias.
— Olha o vaidoso! O que é que estás para aí a inventar? Como se eu acreditasse nisso… Vê lá se queres levar uns burrifinhos de sal para te acalmares.
E foi neste momento do duelo que o Salário apontou para mim e disse:
— De ti depende a recuperação da minha honra de palavra antiga, ofendida por este ignorante. Se não descobrires a minha origem e não a conseguires provar aqui ao zé-ninguém do Saleiro, também a tua honra de detective ficará para sempre manchada.
Claro que tudo isto se passava no palco da minha imaginação, mas, imaginação ou não, o facto é que me senti investido numa missão: a missão de ajudar o Salário a provar, ao Saleiro, que tinha razão. No fundo, eu nem percebia bem o motivo daquela zanga. Cá para mim, eles até eram bastante parecidos. Não no significado. Mas no som e na escrita: saleiro/salário. E este, insisto, é que era o mistério: porque é que, sendo tão parecidas, tinham significados tão diferentes?
[...]
In O Detetive das Palavras (inédito)
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