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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A mordaça impede a fala, o grito, e soa a coisa que apetece morder. É uma palavra com força suficiente para se instituir em metáfora com múltiplas aplicações: pessoais, coletivas, psicológicas, existenciais... Pode, até, amarrar-se sobre as falas de um país inteiro. O livro de Mário Soares, testemunho-pensamento sobre o Portugal de 1926 a 1972 é, desde o título, atravessado por uma ideia-mestra: o coagir e o coartar da intervenção dos cidadãos é uma forma de supressão da liberdade fatal para os países; a intimidação e a censura das falas havidas e desejadas, durante esse período da história de Portugal, foi a causa magna da desgraça do país e a arma magna dos que o desgraçaram. Esta é a tese que atravessa as 728 páginas do livro, a última resposta para todas as perguntas que, nele, nos estremecem a leitura: Como foi possível uma castração tão durável? Como foi possível um isolamento tão duro, em meio de tão vivas mudanças e acontecimentos tão decisivos na Europa e no mundo? Como foi possível forjar uma imagem e uma identidade nacional tão miserável perante os olhos indiferentes do mundo? Como foi possível fazer do país o charco onde coaxavam algumas rãs logo apedrejadas? Como é possível o esquecimento da vergonha de termos sido, no século XX pós 45, o país da miséria, da emigração, do analfabetismo, do conformismo? Do livro de Mário Soares, salta, viva, a ideia de que o poder da palavra e a garantia da sua ampla e livre receção é um poder vital para os povos, um inalienável direito cidadão sempre a ter em conta. Pensar na censura e nas nódoas, feridas, entorses que ela lançou sobre a sagrada capacidade de, em língua portuguesa, falarmos uns aos outros livremente faz doer; pensar na perversão, arregimentação, negação, do uso livre da língua portuguesa durante mais de quatro décadas faz doer. À profundidade e intensidade dessa dor, Mário Soares mete escalpelo e traz-nos, em factos, em pessoas, em datas, o pormenor das suas origens, da sua evolução, da sua duração: por isso, esta sua escrita, mais do que historiográfica, é lírica e contadora de histórias. Trata-se de um escrito do eu, estremecido por todos os frémitos destes escritos: o picaresco, o pitoresco, o emocional, o evocativo, o nostálgico... E, dele, saltam sementes de múltiplas histórias que a literatura poderia ficcionar, algumas já ficcionou. Em livro e em filme. Lemos as páginas 268/269 e, de repente, a mão romanesca de Cardoso Pires detém-nos e ficamos suspensos a lembrar a leitura da sua intensa Balada da Praia dos Cães... Lemos, presos à sua trama policial, os episódios que Humberto Delgado protagoniza na vida e na morte e somos assaltados pela visão do thriller de Bruno de Almeida. Na luminosidade comovente de um escrito deste teor, narrativa muito personalizada, desenhada com todos os nomes e fazendo as movimentações políticas respirarem o sangue do caráter dos seus protagonistas, estampa-se a negro a horrenda figura: Salazar. Salazar: o medo, a desconfiança, a reserva, a habilidade mesquinha, a crueldade, a ordem pré-determinada pela vontade de um sobre todos. Salazar, o dono da mordaça e dos tratadores que açaimam o seu cão-país, não vá ele lembrar-se de que tem sangue e alma e gosto de morder. Salazar, a alma de pigmeu projetada em ogre ameaçador pela posse da luz negra da mentira e da manipulação. A mentira modelando gente grande em meninos vencidos pelo medo. Este livro conta-nos as forças e as fraquezas do povo que fomos nesses anos fundamentais sem deixar de fazer perguntas mais sombrias. Onde estavam as mãos que poderiam ter desamarrado a mordaça, onde as bocas que poderiam ter soprado para o nada a vacuidade do gigante de papel? Atadas. Enleadas no choque de estratégias grupais e pessoais, enfraquecidas por escolhas menores e hesitações maiores, motivadas tão-só pelo seu próprio prestígio público, por jogos mesquinhos e ódios pessoais, cegas e distraídas de um Portugal real, humilhado, ofendido, submetido, esquecido pelos cérebros-arquitetos de movimentações, de ações, de representações... Este lamento também vibra neste livro. O lamento dos erros, hesitações, desistências, divisões, conformidades, conveniências... dos que sempre foram falhando o momento, sempre esperado, do desatar da mordaça. Nos dias de hoje, em que muitos parecem sentir-se interpelados por essa época sombria, em que pulula o interesse pela figura do seu despótico ‘dono’ e pela pesquisa dos seus fundamentos, este livro de Mário Soares ocupa o lugar particular do testemunho do vivido, carregado por um discurso muito pessoal. Na época da sua primeira publicação, teve um papel denunciador.
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