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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 27.01.14

QUEM É O POETA, QUEM É ELE?

 

Era uma vez um Poeta que não podia sair de casa, porque caíra do cavalo e tinha, por isso, ficado com uma perna doente. Para ficar curado e voltar a andar à vontade por aqui e por ali, passeando-se como tanto gostava, era preciso que a sua perna ficasse imobilizada durante algum tempo. E o Poeta lá se convenceu de que, durante as próximas semanas, tinha de ficar em casa. Felizmente, poderia continuar a fazer uma das coisas de que mais gostava: escrever! Foi então que uma história que, há muito tempo, trazia na cabeça começou a pedir-lhe para ser escrita: — Poeta, poeta, já que não podes ir ter com os teus amigos e falar com eles sobre as tuas ideias fulgurantes, escreve-me, escreve-me, por favor. E o Poeta, que gostava muito daquela história que até aí vivia apenas dentro dele no meio de muitas outras que tinha ainda para contar, disse que sim. Recostou-se numa daquelas cadeiras longas onde a sua perna doente poderia ficar confortavelmente estendida, absolutamente quieta para que o tempo a pudesse curar, e pediu que lhe trouxessem uma mesinha de pousar no regaço, o tinteiro, a pena e o papel e pôs-se a escrever. Era uma história muito triste, mas o poeta descobrira uma maneira muito bela de a contar. Desde criança que a conhecia. Quando era pequenino, o Poeta ouvia muitas histórias maravilhosas, contadas por velhas senhoras que ele amava. E olhava encantado para os retratos dos heróis que andavam a lutar pela liberdade. E sonhava. Sonhava com lutas e mistérios e com as belas palavras que os podiam contar. Num desses dias antigos, em que era uma criança sonhadora, o Poeta foi ao teatro. Era um teatro de feira em que os artistas saíam de uma barraca para, vestidos de cavaleiros nobres, porem fogo a palácios. E velhos prisioneiros resgatados, gritavam por vingança… E em que nobres senhoras altivas fugiam espavoridas. E o Poeta nunca mais se esqueceu desse teatrinho de feira em que as figuras, negras sobre a cor fulgurante do fogo, fugiam gritando. E não se esqueceu também do mistério que era a causa de toda aquela tragédia. Na altura mal o compreendeu! Mas, depois, já crescido, interessou-se, procurou saber, leu muito e ficou a conhecer em pormenor aquela história triste que agora estava a escrever. Amava cada personagem que o raspar do bico da pena sobre o papel ia fazendo viver. Vestia-as, dava-lhes gestos e palavras, movia-as, fazia-as rir e chorar. Entusiasmado, esquecia a sua perna doente, os passeios a cavalo e até os amigos que mandavam bilhetes a saber da sua saúde. Tinham saudades de o ouvir a proclamar belas ideias sobre o povo e sobre a cultura que o havia de salvar de ser ignorante e pobre. Durante duas semanas, o Poeta quase mais nada fez senão escrever. Se o pudéssemos ver, parecer-nos-ia uma estátua dos tempos antigos a que um poderoso mágico fazia mover imparavelmente a mão. Mas não havia mágico nenhum! Toda a magia estava dentro do pensamento imaginativo do Poeta donde borbulhavam as palavras que lhe agitavam o braço, ao escrever incessantemente, em sucessivas folhas de papel, aquela história que lhe pedira para ser escrita! Às vezes, o Poeta parava e punha-se a imaginar as cenas que ainda haveria de escrever. Fechava os olhos apoiava a cabeça na seda macia da almofada e sonhava. Foi durante um desses sonhos criativos que o olhar inteligente de uma menina esguia e pálida lhe apareceu e o começou a fitar insistentemente com o brilho de quem sabia coisas importantes que queria, ela também, contar. O Poeta tinha uma filha e, curiosamente, esta menina do seu sonho lembrava-lhe tanto a sua filha! Talvez porque sentia saudades dela, que vivia longe, num convento, que era também uma escola e para onde fora mandada depois que a mãe morrera. O Poeta tinha saudades e pena da sua filha que só via muito de longe em longe e lhe lembrava tempos passados de amores felizes. Talvez fosse por isso que ele sonhava com a menina de olhar inteligente e a ouvia, em sonhos, a dizer: — Deixa-me entrar na tua história! E o Poeta deixou. Quando de novo estendeu a mão para a pena que repousava de bico mergulhado no tinteiro, depois de delicadamente sacudir a tinta em excesso, emocionado, começou a contar de umas flores… Eram papoilas, que tinham murchado nas mãos de uma menina que andara a colhê-las num jardim… Chamava-se Maria.

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por Maria Almira Soares às 22:00



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