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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
«Sim, chorei.» — respondeu Günter Grass a quem lhe perguntava como foi esse processo de, aos setenta e oito anos, conseguir chegar a esse rapaz que, aos dezassete, se fez voluntário das Waffen SS de Hitler. «Não fiz perguntas, não fiz perguntas; chegar a esse rapaz foi um processo doloroso» — disse também.
Enquanto vamos lendo Descascando a Cebola, talvez a impressão que mais vai permanecendo seja a da dor que — mais intensa, menos intensa — vai acompanhando este descascar da memória. É a dor de ir existindo e sobrevivendo ao longo de vinte anos, em função de contextos sempre difíceis e complexos. Às camadas desta cebola não faltam sofrimentos de natureza e espessura variadas.
Se escolhemos a cebola como metáfora do globo em que se vão inscrevendo as variadas regiões da nossa vida, sabemos, desde logo, que, ao descolá-las, havemos de sentir dor. Nunca a cebola será doce para o nosso olhar, para os nossos sentidos, mas o sentir da sua agressividade não é uniforme, é pessoal. Por alguma razão têm lá os franceses aquela expressão com que enxotam os outros dos seus problemas: «C’est pas tes oignons»...
Neste livro temos a cebola pessoal de Günter Grass.
Mas será que esta sua cebola c’est absolument pas nos oignons? Será que lhe diz respeito a ele, e só a ele, que a vai descascando e acertando as suas contas?
Em cada cebola pessoal não há como não estarem incorporadas camadas coletivas. E cada vez mais este mundo em que vivemos é uma coletiva cebola em que todos estamos implicados.
Sendo assim, talvez sejamos capazes de ver, na translucidez das camadas deste livro, não só o homem que o escreve, mas os comportamentos humanos, o ser humano, o Homem, acerca do qual Sófocles escreveu: «Há muitas coisas terríveis, mas nenhuma mais terrível do que o Homem.» E já que do que é terrível falamos, falemos, então, de quão terrível é esse momento de perda da infância, o momento da adolescência, quase um segundo nascimento. Réplica do choro natal, o grito de afirmação adolescente.
Atirado ao desconhecido instável, que esteio encontrou o rapaz Günter Grass para se afirmar? Ai dele, que viu as Waffen SS, braço armado das SS, tropa de elite, guarda de Hitler, comandada por Himmler, como seu lugar de afirmação!
Os adolescentes são elos fracos que se deixam facilmente soldar às cadeias do mal. Soldado a uma cadeia de horror, o rapaz Günter Grass inicia um caminho terrível que, neste livro, não esconde, não sonega, não disfarça: descasca cruamente atingindo-nos o olhar de leitores.
Interrogamo-nos, ponderando o valor relativo que o contexto de guerra, de caos, de abismo, nos leva a ponderar?
Interrogamo-nos, conscientes do peso absoluto, supratemporal, daquilo a que chamamos Humanismo, com um olhar que absolutiza e condena indelevelmente o que é desumano?
Todos trazemos connosco o rasto das nossas vidas, mais secretas, menos secretas, que, às vezes perante nós, às vezes perante os outros, vamos dessecretizando. Num artista, num escritor nobelizado, porém, a exposição das secretas camadas da sua cebola-vida é enorme, é escândalo. No caso de Günter Grass, há uma vida adolescente e jovem dolorosamente guardada dentro de si, enquanto o mundo, algum mundo, o destrói, o condena, o executa no patíbulo da sua consciência moral. Escritor maldito? Não, não chegou a alcançar esse estatuto. Mas, da sombra a toldar a luminosidade do seu génio artístico, não se livrou. O tempo ludibria as consciências trocando lugares entre o que é defensável e sensato e o que é condenável e filho da loucura. O tempo da adolescência não é igual ao da idade madura: nem o pessoal nem o histórico.
Tem a cebola um núcleo permanente? Ou é apenas um conjunto de camadas sobrepostas? Há, na cebola-vida de Günter Grass, um núcleo essencial cuja substância as várias camadas vividas não afetam? Há, nele, uma consciência ética permanente e manifestada neste livro? Poderemos ler este livro, deixando de lado as camadas mais problemáticas, política e civicamente escandalosas, e centrar-nos, por exemplo, na sua caminhada de artista plástico e escritor? Ou na teia das suas relações pessoais, amorosas, familiares? Ou na geografia e sociologia dos lugares/tempos que vai atravessando? Ou na visão terrífica da guerra e do seu rasto de consequências, independentemente do lado e da condição de quem a narra?
Ou este será para sempre um livro negro?
Este livro levanta a grande questão, que permanece, das relações entre a arte e o mal. Questão que lemos, por exemplo, em Hannah Arendt e em George Steiner.
Como cresceu a natureza de artista/escritor reconhecido e admirado em todo o mundo, num homem que combateu nas SS hitlerianas defensoras do monstro assassino? Como pôde ter sido José Saramago amigo deste homem?
Temos, de novo, a recorrente questão da relação artista/homem, velho tema que tanta perplexidade nos causa. Aqui de algum modo remido pela idade muito juvenil? Erro de juventude, posteriormente resolvido? É este livro um expoente de coragem redentora? Livro fácil/difícil para o seu autor? Louvamos a coragem da confissão ou acusamo-la de tardia?
Cada ser humano não é só feito de luz, sabemos. Há um lado negro na vida de Günter Grass, sabemos. Mas, apesar das manchas indeléveis, somos capazes de lhe ler os livros, de lhe admirar a sua arte literária e plástica? Ou rejeitamo-lo liminarmente, depois de lermos este desatar de nó difícil, feito das camadas da sua cebola pessoal?
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