Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O PIRES CAVALEIRO
Tenho a honra de lhes apresentar o Pires cavaleiro: oito anos e meio. Boca alegre e de resposta pronta; menino prodígio, portanto. Rosto oval e penugento. Olhos redondos, doirados, frescos como dois bagos d'uva branca em manhã orvalhada d'agosto. Traço final do esquema: sobrinho duma casa d'hóspedes na Travessa das Mercês, ao Calhariz. Em rigorosa verdade, ele não é sobrinho da casa, mas da proprietária da pensão, Dona Ana Fernandes, senhora de rija têmpera para o trabalho e de maternal condescendência para os calotes; como porém o grosso dos comensais é constituído por solteirões, todos nós nos consideramos um bocado tios do pequeno. Claro que o Pires cavaleiro, não é cavaleiro de Cristo, nem d'Avis, nem d'ordem nenhuma; chamamos-lhe assim por ter um cavalo de cartão com que dorme na cama, abraçadíssimo, sonhando galopadas relampagueantes, por montes, vales e terras de maravilha . .
No convívio com gente do mais desencontrado feitio — jornalistas, homens de negócio, literatos, oficiais de terra e mar, atrizes, clérigos — O Pires adquirira desenvoltura de modos e firmeza d'opiniões. Nas berrantes controvérsias que se levantavam à mesa metia sempre o seu bedelho autoritariamente.
— Eu cá sou republicano . .
— Mas porquê, Pires ? Porque és tu republicano? perguntou-lhe duma vez um jornalista vermelho.
— Porque sou teu amigo . .
Se não era bem uma razão, era metade dela. Não é o sentimento o melhor filtro do raciocínio ? Não é a consciência a harmonia entre o coração e o cérebro? Pires é visitante assíduo do meu quarto. Cá passou ontem a tarde inteira a folhear ilustrações, salivando no dedito para voltar as páginas, e fazendo em solilóquio a apreciação das estampas:
— Esta não presta . . . Huum, também não presta. Desta gosto.
A certa altura, deteve-se a examinar atentamente um pónei esquissado de perfil. Mirou-o. Remirou-o. Depois, ficando com a lauda segura na mão, a noventa graus sobre o plano da mesa, inclinou a cabeça e espreitou para o outro lado da página. Olhou a seguir para mim e como eu disfarçasse mostrando-me absorvido na leitura do Notícias, o Pires tirou com gesto subtil uma caneta, molhou-a em tinta e, voltando a página, traçou no reverso da gravura um círculo negro com uma pinta ao centro. Era o outro olho do cavalo. Dado aquele quinau no animalista e farto já de belas artes, pôs-se a lambuzar de goma arábica quantos papéis achou à unha. Dessa feita, estava eu deveras alheado a ver o que ia pelo mundo nos telegramas da Havas. Quando dei pela coisa, tinha-se o Pires esgueirado e não havia no frasco — nem gota . . . Em compensação, havia goma por toda parte: na colcha da cama, em livros, cartas, fotografias . . . Que fazer? O que fiz. Chamar a criada para limpar a bodega e mandar comprar outro vidro de goma.
Esta manhã entrou o cavaleiro, cumprimentador e álacre, de peito feito para a colagem. Ao ver na secretária um frasco cheiinho, com a cápsula reluzente e o pincel muito aprumado, mais se lhe aguçou o desejo.
— Oh Gil, tu tens goma?
— Tenho. E apontei-lhe o vidro despejado.
— Está vazio . . .
— Está? Então não tenho.
Pausa d'instantes.
— E isto? perguntou, indicando outro frasco.
— Isso não é goma. É um remédio.
Segunda pausa.
— Andas a tomá-lo?
— Ando. Ando a tomá-lo às colheres.
Terceira pausa, mais longa. Pires adiantou-se para a janela e quedou-se por momentos, d'olhos fitos na esquina fronteira, meditativo, contrariado. De repente, girou sobre os calcanhares e encarando-me face a face, inquiriu com um sorrisinho arguto:
— Olha lá! e também tomas o pincel? . . .
Augusto Gil
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.