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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)


Terça-feira, 29.07.14

VENTURA E QUEIJETAS

 

Chamo aqui, na sua qualidade de representação ficcional de um saber experiencial, estas linhas do Cântico Final, romance de Vergílio Ferreira:

 

«Abri o livro, li: “sonho que sou um cavaleiro andante”, […] Peguei no soneto e li-o. Perguntei-lhe: entendeste? “Entendi, sim, senhor”. “Então explica lá”. “Bem, - disse ele. Isso é assim como se eu visse uma casa rica e dissesse comigo: vai lá, João, vai lá que ali há de haver pão, chouriço, vinho e queijetas. E depois eu vou lá - e nicles: não há lá nada.”»

 

 O que aqui Vergílio Ferreira ficcionalmente representa é um ato de leitura bem demonstrativo da desigualdade matricial da cultura leitora do professor e do aluno, impossível de ser apagada por qualquer preceito pedagógico de aproximação alisadora. Sem a presença deste desequilíbrio na matriz relacional, não há condições de efetiva educabilidade. Se o atrito entre o que vai subsumido no «entendeste?» do professore o «chouriço»e as«queijetas» da leitura genuína do aluno, for apagado, também não poderá ser transcendido, uma vez que, no jogo didático que é a verdade da aula, deixa de existir. A tendência pedagógica para a promoção deste apagamento atua perversamente e retira, ao aluno, condições de ser conduzido para uma outra cultura leitora que o professor lhe abriria como possível, desejável e até apetecível.

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por Maria Almira Soares às 12:44

Segunda-feira, 28.07.14

EDUCAÇÃO & LEITURA: O OVO DE COLOMBO?

 

 

Luiz Philippe

 

É o significado profundo desta conexão entre educação e leitura e das condições da sua praticabilidade que questiono, pondo em causa a aceitação da evidência de uma relação imediatamente harmónica ou desarmónica das suas partes. Em meu entender, tal aceitação, ora forçando a liberalização da escola, ora forçando a instrumentalização da leitura, tem participado na detração da natureza quer de uma quer de outra e, ainda assim, sem grande produtividade. O significado com que uso aqui o termo educação é fiel à sua etimologia, aquele que George Steiner subscreve quando afirma: «Educar» significa «fazer avançar» e, paradoxalmente, fiel também ao sentido de restrição implícito na voz daquela personagem de Vergílio Ferreira que, no seu modo ficcional, misto de efabulação e debate de ideias, diz: «Toda a educação é uma violência». Desinteresso-me da hipótese de leitura e educação serem meros processos paralelos, cujo espaço interativo seria um lugar cego, habitado por simultaneidades proféticas, o que, deste modo e nos próprios termos, impossibilitaria a análise da relação que procuro compreender. Desinteresso-me da hipótese da dupla e reversível metaforização que toma ler como educar e figura, no educar, uma aplicação do ler, porque a razão de ser desta conexão se situa principalmente no plano nominal do jogo retórico, acumulando espessura verbal sobre um pensamento que se exige clarificador. Assim, passo, liminarmente, ao interesse pelo debate sobre se, no ato escolar de educar leitores, educação e leitura são práticas harmonicamente conjugáveis, em ambiente de homogenia, ou se a significação do mútuo efeito de atrito, gerado na educação escolar do leitor, reclama uma chave interpretativa da ordem do paradoxo. É esta a questão que coloco como primeira entrada num percurso de clarificação do conceito de educabilidade escolar do leitor. Esta abordagem problematizadora da conexão entre educação e leitura (na sua vertente: educa-se a leitura?) é, nos relatos de experiência frequentemente produzidos, invertida e ocultada, em prol da aceitação de uma suposta evidência testemunhal: a da harmonia implicada nos aparentes resultados educacionais positivos da leitura. Deste modo, a bondade educativa da leitura (presumida a partir do reconhecimento cego dos seus resultados e, a partir deles, generalizada) e, bem assim, a forçosa harmonia aí implicada, abatem a complexidade do problema até à superficialidade demonstrativa de um ovo de Colombo. A colocação de todo o horizonte de interesse do lado do efeito prejudica oportunidades de reflexão sobre a natureza e condições da educabilidade do leitor. O ah! conclusivo e aprovador absorve a questionação do processo, como se este fosse também evidente e participasse da energia benéfica do seu resultado. Educar e ler euforicamente homogéneos?! Partindo da hipótese de que o elo relacional entre educação e leitura não se estabelece por virtude de uma espontânea reação harmónica, quebro o aparente círculo virtuoso da leitura que educa e é educável. Trata-se do passo inicial para a compreensão da complexidade relacional entre educação e leitura e, daí, para a dilucidação do factor capaz de respeitar e transcender o seu diferendo natural, transformando-o em coerência educativa. Evidenciar este factor será estabelecer um campo de trabalho metódico sobre a educação escolar do leitor, em vez de a deixar ao sabor de dinâmicas caprichosas e resultados episódicos que, por sua vez, caucionam preceitos, doutrinações e práticas equívocas. A fácil demonstração de uma verdade através do testemunho de práticas que aparentam ser a sua própria evidência sobretudo neste caso da educação escolar do leitor, em que a análise reflexiva detecta, nas práticas, largos défices de coerência ofusca a sua compreensão, ocultando factores e dimensões que lhe são essenciais. A reflexão sobre a anedota do ovo de Colombo descobre a posteriori que a aparente facilidade do gesto para a verticalidade foi, afinal, a inédita ousadia de legitimar o atrito sobre um fechamento perfeito cujo potencial de verticalidade seria, na ausência de tal gesto, tão-só o de girar em torno de si próprio. Se retomo o simbolismo desta história é porque lhe atribuo uma significação congruente com a linha de pensamento em que me coloco: a da convicção de que, em educação, preterir a concordância com um estado de assumida perfeição natural é condição para atingir um nível superior de realização: a perda é transcendida pelo valor que permite atingir. Ou, visto de outro ângulo, nas reiteradas palavras de Vergílio Ferreira: «Toda a educação é uma violência». Tomo-o, também, como metafórico aviso de que, em educação, o evidentemente fácil é o difícil transformado em aparentemente fácil por quem, para tal, tem o saber.

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por Maria Almira Soares às 22:20


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