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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
— Não, livros desses não são das minhas relações. Livros simultaneamente encantatórios e portadores de conhecimento, mas feitos de tropeções sintáticos, em que as imperfeições da progressão do discurso avançam e se multiplicam empurradas pelo desleixo ignorante, não são das minhas relações. Penso, até, que a associação entre o encantamento e o erro é muito perniciosa, sobretudo para aqueles que ainda estão a apurar o gosto e a construir o critério.
[...] Percebo que estão à espera. Vai passar o desfile. Estão à espera de entrarem na carruagem certa, para que não haja confusões. O que é da sua companhia está inscrito no que é da sua vida, artigo 1º: do que deve ser. Olha, estas não sofrem do mal da hesitação! Fizeram-se devedoras-credoras das suas companhias e só com elas hão de desfilar. Pelos ouvidos, acrescento coisas ao que delas, por as olhar, já sabia. Enquanto o meu corpo acalma a sua rejeição do movimento e se repõe numa inércia de descanso. Sou uma pedra à beira da qual há marulhos. Por dentro da pedra da imobilidade em que estou há água e fogo e algum ar. Por necessidade, sentada bem juntinho às três irmanas que não bailam debaixo de um castanheiro que não é avelaneira e haveria de estar florido mas não está, não tenho rancho nem armada. Sou uma one woman sem show. Estou por minha conta e muito incomodada com o constante movimento deslizante das coisas umas sobre as outras que chega a enjoar-me. Será que tenho de ir ao oftalmologista? Comprar uns óculos novos para a alma que não está a conseguir focar decentemente o eterno desfile da vida? Olha já ali vêm — diz uma das amigas ao avistar um letreiro elevado no ar que diz Setúbal. A do crochet arruma calmamente o trabalho ou passatempo numa mala velha e baratucha e as outras já sacodem a traseira das saias que se tinham colado ao rabo. De pé, esperam o exato momento de gritarem, agitando o braço: ó Zulmira estamos aqui, e avançarem para o minuto da sua entrada no rio de gente avenida abaixo e para o zumbido grosso e modulado que o acompanha. Eu fiquei mais à vontade no banco. Ainda penso e se eu fosse também? Vou? Não vou? O que faço aqui? Quis saber quem sou... Cometimento desgraçado que me tem emaranhado os passos da vida. [...]
Um dia, quando o meu pai, durante o jantar, disse «chega-me o salário», eu levantei para ele uns olhos risonhos e ligeiramente críticos, mas nem me passou pela cabeça até onde este microepisódio me poderia levar.
A minha mãe riu-se e chegou-lhe o saleiro. Ele sacudiu a cabeça como quem apaga um erro momentâneo. Mas eu fiquei com o «saleiro» e o «salário» entalados na minha indomável vontade de decifrar os mistérios das palavras. Estas duas eram tão parecidas! Porque seriam assim tão parecidas, se significavam coisas tão diferentes!? Nesse dia à noite, enquanto não adormecia, pus-me a inventar uma brincadeira com elas, assim como se fossem duas marionetas dum teatro de fantoches. Começavam as duas às turras uma na outra e dizia o Salário para o Saleiro:
— Mas que abuso de confiança! Tu não és salário. Tu és saleiro. Salário sou eu.
— Que é que queres, pá? Ora, agora! Vires pedir-me meças a mim, que não tive culpa nenhuma! Quem me chamou salário foi o pai do Luís.
— Olha que tu tem cuidado Saleirinho refilão! Olha que eu sou uma palavra de estirpe muito antiga.
— Qual estirpe nem meia estirpe! Sei lá eu o que é estirpe!
— Sou uma palavra muito antiga e de muito boas famílias.
— Olha o vaidoso! O que é que estás para aí a inventar? Como se eu acreditasse nisso… Vê lá se queres levar uns burrifinhos de sal para te acalmares.
E foi neste momento do duelo que o Salário apontou para mim e disse:
— De ti depende a recuperação da minha honra de palavra antiga, ofendida por este ignorante. Se não descobrires a minha origem e não a conseguires provar aqui ao zé-ninguém do Saleiro, também a tua honra de detective ficará para sempre manchada.
Claro que tudo isto se passava no palco da minha imaginação, mas, imaginação ou não, o facto é que me senti investido numa missão: a missão de ajudar o Salário a provar, ao Saleiro, que tinha razão. No fundo, eu nem percebia bem o motivo daquela zanga. Cá para mim, eles até eram bastante parecidos. Não no significado. Mas no som e na escrita: saleiro/salário. E este, insisto, é que era o mistério: porque é que, sendo tão parecidas, tinham significados tão diferentes?
[...]
In O Detetive das Palavras (inédito)
«Há em mim uma falta essencial, pecado original cometido na eternidade. Mas não o sei. Não é assim a maçã que Adão mordeu por mim, é qualquer coisa de mais profundo e ininteligível e absoluto. Qualquer coisa que me viciou a vida toda e se manifesta na culpa e na vergonha que me embaraça em todas as situações e me diminui absurdamente aos meus olhos (e aos dos outros que dão por isso) e me retira toda a satisfação do que é para satisfazer como se o não merecesse, e restringe tudo o que era de supor-se dar-me uma pequena glória ou triunfo. Há uma nódoa que dessa eternidade se distingue e vem a ser mancha em tudo que faça e brilhe. É fácil talvez determinar as razões dessa enfermidade sempre presente e aflitiva, mas são razões que não servem, porque não embaraçam os outros e os deixam livres para serem por inteiro.»
Conta-Corrente 4
Uma vez, um Português encontrou uma Superfície e ficou a congeminar que coisas estariam a mover-se por baixo dela. Como as não via, tudo poderia imaginar e, imaginando, multiplicava as coisas que, verdade ou mentira — isso não lhe interessava nada — poderiam estar por baixo da Superfície. E, multiplicando-as, todo um mundo de cores e sons o maravilhava, existisse ele ou não por baixo da Superfície. Achou isso tão divertido, tão excitante, que, entretido, nunca mais se lembrou de que, se se ocupasse a arredar a Superfície, poderia realmente ver e conhecer as coisas, em vez de ficar para sempre a fantasiar.
Nos últimos anos tornastes-vos mais cépticos, meus alunos! Noutros tempos, não o éreis tanto. Vínheis ainda bastante convencidos de que a Escola sabia algumas coisas importantes. De que a Escola era fiável. Agora nem tanto. Adoptastes a postura da desconfiança, da indiferença sobranceira. Coisa que, em verdade, nada me admira. A Escola esforça-se muito por evitar qualquer desnível entre o dentro e o fora dela; a Escola, pobre dela, atingida por um complexo gregário, força-se a tornar-se parecida com a vida, almejando ser reconhecida como sua igual, mas esse esforço inútil e impróprio, é evidente que está, por definição, votado ao fracasso. Malgrado esse tonto desiderato, restam sempre algumas coisas que a Escola tem de vos ensinar, coisas que desconheceis e que ela tem de vos ensinar. E vós, que, de certo modo, julgais já tudo saber, que julgais tratar-se da mania, que a Escola tem, de inventar qualquer coisa para marcar ainda algum terreno seu, encolheis os ombros e lá ides calculadamente disfarçando a vossa genuína indiferença.
Quando me lembro de vós e vos vejo, parece-me que gostaríeis de que a Escola só vos dissesse que sim, servisse apenas para oficializar o que já sabeis, para vos ratificar a vós que vindes já todos feitinhos por um mundo superpovoado de tanta e tão truculenta informação. Gostaríeis que a escola só vos fizesse as perguntas para as quais já possuís as respostas. Ou, pelo menos, respostas aproximadas que estais convencidos de que servem perfeitamente e que a Escola, como um parceiro benévolo, deveria aceitar. Por isso, ficais de certo modo ofendidos e perplexos, como se não estivésseis a ouvir bem, como se se tratasse de um problema de tradução, quando vos recuso peremptoriamente respostas imprecisas, pouco rigorosas, ainda que sensivelmente parecidas com o que poderia e deveria ser. É como se, acerca de tudo e de cada coisa de que a Escola tem de tratar, já tivésseis ouvido falar neste mundo que de tudo fala.
(Excerto de Carta aos meus últimos alunos - 2008)
[...] Estais adaptados. Ou, então, seriamente convencidos de que: — A Escola é isto. — aceitando-a como coisa de muito pouco valor. Para vós, a Escola é isto. Escola é este caravançarai de que, a outro propósito, falava Garrett num livro que a Escola já vos não dá a ler. Outros, tidos como ‘sábios’, tidos como pedagogicamente competentes, decretaram-vos incapazes de ler alguns livros importantes. Prescreveram-vos uma dieta de leitura miserável. Prepararam-vos ementas aguadas onde boiam dizeres massificados que não vos abrem nem vos refinam o apetite. Ah, meus alunos, quase vos peço desculpa (embora culpa não tenha) por ficardes sem provar iguarias literárias que outros meus alunos, em eras anteriores, saborearam, primeiro com estranheza e resistência e depois com gosto e alguns até com gula. Quando, às vezes, arrisco infringir a prescrição programática e vos leio ou refiro algum desses preciosos livros, pareceis ter pena da vossa ignorância e eu penso que mesmo só isso, só essa pena, talvez vos deixe uma lembrança para desejos futuros. Olho-vos e penso com amargura que, graças a esta evolução tão pouco natural da vossa espécie, essa bela espécie de ser-aluno, havereis de chegar à incapacidade de ir além da medida de um slogan. No estado de penúria literária a que vos fizeram chegar, certo que uma dose da grandeza de umas Viagens na Minha Terra vos seria mortal! Senão para vós, que pareceis arranjar sempre maneira de tudo contornar com vossos truques de plantas vivazes, pelo menos para o belíssimo livro de Garrett. Olho-vos e aperta-se-me o coração de pensar como vos foram retirando a capacidade de ler o difícil e o complexo.
(excerto de Carta aos meus últimos alunos, 2008)
....
Mágicos transes,
Mais sérios, mais ligeiros,
Em que até os verdadeiros romances
Eram romances verdadeiros!
Feitos de Serras e Cidade,
De Morgadinhas e Ilustres Casas,
Voavam, davam asas
À felicidade
De os ler inteiros.
Ou, mesmo recortados,
Com princípios e fins emoldurados
Por títulos e ilustrações,
Espertos regatinhos,
Brincando folgazões,
Corriam nas aldeias sossegadas.
E, entre Enganim e Cesareia,
O Sol, o celestial girassol,
Logo pela manhã, ao arrebol,
Perseguia Donas Brancas raptadas
Ou acordava henriquinhos
De tia Doroteia.
E eu lá ia indo, indo,
Naquele mundo cada vez mais lindo
Em que o luar, p’la estrada plana,
Se evaporava numa lida insana
E, afinal, a água era só brilho
Jorrando de fontes de cristal,
Enquanto, sobre o verde do tomilho,
Só a lua começava a ser real.
... que aquilo a que hoje chamamos língua começou por ser uma primeva literatura, genuína e livremente criativa... mas, depois, institucionalizou-se, decaiu em léxico e gramática... que o primeiro pensamento gramático roubou a língua a essa primitiva natureza de criação literária... e que, depois de separada da sua génese literária, a língua nunca mais deixou de tentar o regresso à sua natureza original... daí a persistência da criação literária... é a língua em fuga da gramática, em subversão do léxico, à procura da sua primeira natureza de literatura.
1.
— Porque é que és tão formosa?
Porque é que tens tanta vida?
— De manhã, como uma rosa.
À noite, uma margarida.
2.
Ao passares, paraste o vento,
Da noite abriste a fundura.
Só de sonhos foi um cento
Que te caiu da cintura.
3.
Em forma de caracol,
Um fio caiu do céu.
Era um cabelo do Sol
Que o meu olhar aqueceu.
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