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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)


Quarta-feira, 22.10.14

LEITORES

 

lesser-ury-25.jpg(Lesser Ury)

 

A leitura não se realiza sem a entrega do leitor ao texto. Sem o texto, o leitor nunca saberia da sua existência como leitor daquele texto. O texto é o princípio ativo da imaginação que o leitor de si mesmo faz no ato de ler, da figura metamórfica que, de si, cria. Sem aquele texto, o leitor nunca conheceria aquela forma de si que o texto lhe oferece; sem aquele leitor, o espetro atrativo de mundos imaginários do texto ficaria para sempre incompleto (ficará sempre incompleto). A leitura de um texto é as leituras singulares, todas as leituras singulares, atravessadas pelo caminho singular que o texto, através de todas elas, vai fazendo: feixe de leitores, atados por um texto. Leitores, todos os que se colheram no não dito do texto, em que se projetaram mobilizados pelo dito do texto.

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por Maria Almira Soares às 20:18

Terça-feira, 24.06.14

CÂNDIDO OU O OTIMISMO

Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer. Tinham, pois, prendido um biscainho que casara com a própria comadre, e dois portugueses que, ao comer um frango, lhe haviam retirado a gordura: vieram, depois do almoço, prender o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação: foram ambos conduzidos em separado para apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois vestiram-lhe um sambenito e ornaram-lhe a cabeça com mitras de papel: a mitra e o sambenito de Cândido eram pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras; mas os diabos de Pangloss tinham cauda e garras, e as flamas eram verticais. Assim vestidos, marcharam em procissão, e ouviram um sermão muito patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto cantavam; o biscainho e os dois homens que não tinham querido comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora não fosse esse o costume. No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor.

Voltaire

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por Maria Almira Soares às 22:08

Segunda-feira, 26.05.14

A LUTA ENTRE O SONHO E O REAL

 

[...]

«Dizia ele entre si:

— Demos que, por mal dos meus pecados (ou por minha boa sorte), me encontro por aí com algum gigante como de ordinário acontece aos cavaleiros andantes, e o derribo de um recontro, ou o parto em dois, ou finalmente o venço e rendo; não será bem ter a quem mandá-lo apresentar, para que ele entre, e se lance de joelhos aos pés da minha preciosa senhora e lhe diga com voz humilde e rendida: “Eu, senhora, sou o gigante Caraculiambro, senhor da ilha Malindrânia, a quem venceu em singular batalha o jamais dignamente louvado cavaleiro D. Quixote de la Mancha, o qual me ordenou me apresentasse perante Vossa Mercê, para que a vossa grandeza disponha de mim como for servida”?

Como se alegrou o nosso bom cavaleiro de ter engenhado este discurso, e especialmente quando atinou com quem pudesse chamar a sua dama

[...]

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por Maria Almira Soares às 13:05

Domingo, 11.05.14

VIAGEM A PORTUGAL

A COMUNIDADE DE LEITORES LERDOCELER, REÚNE-SE NO DIA 15 PARA FALAR DE

 

 

Se fosse um poema, era o contrário d’Os Lusíadas: um poema da descoberta da terra. Lê-lo — nesta era de fuga do interior do país, nesta era da presumida superioridade do litoral, nesta era de mapas feitos de mar — é um caminho para a consciência da terra que somos. Somos terra. Num ciclo de leituras sobre Portugal, que é atualmente o da LERDOCELER, este é o livro que nos lembra de que, para lá de todo o resto ou com todo o resto, somos a terra sobre a qual pomos os pés e da qual andamos sempre a querer fugir.

A Portugal — não em, não por — é a viagem cuja preposição marca, desde o título, o sentido do movimento: a partir de afastamento, à procura de um encontro. E muito encontramos. Dentre esse muito, talvez o motivo mais constante seja o da chave, o da questão importante de encontrarmos ou não encontrarmos a chave. Sem chave não se entra. Sem saber onde está a chave, sem ir à procura da chave, sem que o guardador ou a guardadora da chave a faculte, sem que a chave encontre a porta e a abra, não entraremos e não conheceremos, coisa que acontece muitíssimas vezes. Este motivo da chave — só pela sua frequência e sem qualquer esforço explícito do autor nesse sentido — torna-se alegórico de um país fechado, escondido, subtraído, secreto, de um país por abrir. É a metáfora da ignorância de que o valor só se revela partilhando. A terra também é isto: o olhar que a gente tem sobre ela, o lugar de nós em que a guardamos, o como, aos outros, a abrimos.

O Viajante, uma espécie de Vasco da Gama ao contrário que anda a descobrir a terra numa caravela disfarçada de automóvel, é o seu mapa mental, cultural, sensitivo. A viagem é o viajante: desenhado a traços de bonomia e exigência, de olhar agudo, opinioso e contemplativo, cumpridor registo de pormenores, inventivo e recriador, humano, às vezes poeta.

O Viajante foi a Portugal, trouxe de lá a terra e soube escrevê-la. A escrita rola, desdobra-se leitura abaixo com a presteza do Viajante a ir de serra em vale, de rio em charneca.  É uma escrita sem acidentes, sem solavancos, de palavras bem rodadas por experiente conhecedor do seu poder e da sua resistência. Linguagem plástica, rica, rigorosa, inventiva.

A viagem por esta Viagem a Portugal é um regresso: ao país anterior às autoestradas, riscado pelos ziguezagues caprichosos de um herdeiro de Cesário «que andava na cidade como quem anda no campo» ou de um Caeiro que tinha «o costume de andar pelas estradas», um viajante que vai apascentando o rebanho dos seus pensamentos. Sem pressa.

Dizem-nos que somos férteis em transformar viagens em literatura e falam-nos da Peregrinação, da História Trágico-Marítima, de Wenceslau de Moraes, de Camilo Pessanha, de Camões... Mas ter a ousadia de quase quatrocentas páginas de viagem sem sair do berço, nem Garrett, o claro patrono, que só foi até Santarém e, breve, se perdeu noutra ordem de caminhos, os da novela romântica! A viagem é sempre um risco e esta também os tem: os da repetição, da monotonia, do adormecimento... Aqui, os mostrengos não são dos que fazem tremer. Mas que quereis? É este o país: um país incubado no desleixo, na inércia, na indiferença, velado por belezas irreveladas cuja História e Geografia – e há aqui muita História e Geografia – progressivamente se apagam da mesa do que interessa...

De vez em quando, é bom que nos vejamos ao espelho, e talvez que um bom espelho de um país seja a sua terra, as suas terras, os seus topónimos, os seus monumentos, as pedras arruinadas de antigos domínios nobiliárquicos e eclesiásticos, o seu calor e o seu frio, a sua chuva, os caminhos, maus e bons, por onde andou e anda.

Como diz o Viajante, a viagem não acaba nunca e, por este livro acima, por este país que ele nos conta abaixo, vemos raízes, vemos sementes, vemos origens, modos, atitudes, diferenças, constantes, tonalidades, vemos a pedra e a água, os muros e as árvores, vemos causas e consequências: paisagem que também somos.

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por Maria Almira Soares às 22:12

Sexta-feira, 09.05.14

VIAGEM A PORTUGAL

"Não resta muito mais da antiga cidade por estas bandas: está aqui a Casa dos Bicos, modesta prima afastada do Palácio dos Diamantes de Ferrara" [...]

José Saramago, Viagem a Portugal (1980)

 

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por Maria Almira Soares às 23:05

Sexta-feira, 09.05.14

A LEITURA

 

1. Frente a um texto, eu não fico parada; ele começa logo a criar um processo de verbalização em mim. A leitura não é uma suspensão de um texto à minha frente, não é um ecrã.

 

2. Perigosamente, as necessidades de alimento do imaginário são apresentadas como absolutamente ligadas ao imaginário do dinheiro. Há as bibliotecas, mundo maravilhoso, gratuito e gratificante, fora do mundo dos negócios.

 

3. A criança não tem em si inscrita a dimensão do tempo. Quem governa o tempo da criança é o adulto. O adolescente não toma o tempo a sério. Sobrepõe-lhe a vontade. A Escola não deve apresentar a leitura como um dilema entre tempo livre e tempo ocupado.

 

4. As respostas de cruz são antileitura, significam o grau máximo da instrumentalização escolar do texto literário.

 

5. Para formar leitores, é imprescindível ser um grande leitor, o que implica quantidade, qualidade, critério, sentido crítico, abrangência e diversificação de leituras, sensibilidade. Implica dados, informação, mas também emoções. Implica experiência e reflexão. Motivar para a leitura não se reduz a «mandar ler», «aconselhar a ler», pregar a «bondade da leitura». É mostrar em pessoa, em espécie, quão interessante é ler. É contar pequenas histórias de quando se estava a ler o livro tal e tal, pequenas ou grandes descobertas, surpresas, curiosidades, episódios, tomando a leitura como uma das linhas interessantes do decorrer da vida. Presença, projeção, em vez de apuradas técnicas e de efeitos lúdicos, espetaculares.

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por Maria Almira Soares às 22:08

Sábado, 12.04.14

O GENE DA LEITURA

 

Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-no emprestado a quem o tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação. Ser leitor é: gostar de estar sossegado e só esforçar os olhos e a cabeça para ficar a saber coisas que, magicamente, sem pincéis nem tinta, têm cor e forma e, sem projetor, têm movimento; é ser-se curioso, e gostar de seguir roteiros e de encontrar respostas; é ser infantil na abertura à fantasia e adulto no jogo dos sonhos escondidos; é o gosto da intriga, do enredo, da novidade e da descoberta; é o gosto dos nomes, das referências, das frases bem-dizentes; o gosto das palavras bem-soantes; o gosto da fuga, de ultrapassar o real pela fuga e lhe fazer uma espera mais à frente, já ficticiamente senhor das suas estratégias. Ideal é que o ensino da técnica garanta a realização do desejo. Mas o desejo, esse, não se ensina. Provoca-se. Desperta-se. Provoca-se a curiosidade, proporciona-se o agrado com o efeito de surpresa. Faz-se com que ler seja acontecer. A escola pode ser um lugar onde, enquanto se ensina o ler, se desperta a fantasia. O tempo e o modo de ler podem ser vividos na escola como quem aviva um desejo, um fogo que velaremos ao abrigo das coisas da vida que tendem a apagá-lo, fazendo dos livros um espaço pessoal de liberdade, aprendendo que ninguém está no espaço incolor em que as histórias que lemos se tornam reais, senão nós. Só se quisermos e quando quisermos o partilhamos. A escola pode ensinar que ler é uma porta que se abre, um acesso, uma entrada; que, quando alguém abre um livro e se põe a ler, como que fica intocável. Mas não só a escola. Desejável é que aqueles que parecem geneticamente mais dados à leitura contrariem a tendência social para ler pouco, peguem ostensivamente em livros, juntem dinheiro para comprar livros, a prestações, se for preciso, como fazem com outros bens; em segredo primeiro, se tiverem vergonha, e, depois, à vista de todos, causem o escândalo da leitura, numa sociedade que não lê, e, depois, talvez, o respeito. Se não há um gene da leitura reconhecível num exame médico, que se garanta, pelo menos, meios de transmissão social: a escola, e todos os que gostam de ler. Que ninguém diga: quem não quer ler que não leia, colocando no mesmo leque de opções coisas ontologicamente distintas. Pasmoso é o esforço insano que fazem as escolas para desenvolverem práticas, às vezes espantosas, e espantoso é que ninguém se lembre da hipótese de haver nelas coisas como, por exemplo, a Leitura ao Fim da Tarde. Ler já foi uma arma da adolescência. Esta perdeu-a, mas deve recuperá-la. A leitura já foi um espaço de mudez-surdez, tão caro aos adolescentes, habitado por sonhos e ousadias; era um espaço de imobilidade pesada, atirada contra a presteza e prontidão dos adultos; era um espaço de atraso e de demora, de desculpa, de teimosia, de ultrapassagem subterrânea dos legítimos superiores. Hoje, o adolescente não suspeita de quão estrategicamente útil lhe poderia ser a leitura, e foge a desgastar-se noutras andanças. Há um vazio imenso a fingir que é movimento e alta voz. Ler não é uma atividade essencialmente grupal, mas garante ao grupo a existência do indivíduo. Um grupo não é só uma coincidência de gente na mesma escola, na mesma rua, na mesma praia, na mesma discoteca. Não é apenas uma simultaneidade. No equilíbrio das forças que sustentam um grupo tem de haver um lugar para a distância, para a pertença a si próprio. A leitura é um elo que nos solda a alguma coisa de sólido que vai havendo em nós, enquanto a diversidade nos interpela, ao som de uma voz pública que nos pretende ditar, como se fôssemos só uma folha branca onde nos vão inscrevendo. Porque ler é também rejeitar, revelar, identificar, abrir, descobrir. É muito provável que não haja o gene da leitura, mas tem de haver a educação para a leitura, como imperativo de uma cultura humanista.

 

 

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por Maria Almira Soares às 01:33

Domingo, 06.04.14

O DUENDE DA MERCEARIA

 

Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem. Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno — e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.

— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver interessado.

— Obrigado — respondeu o estudante. — Dê-mo em vez do queijo. Passo bem só com pão. É uma pena usar um livro destes para papel de embrulho! O senhor é muito boa pessoa e bastante prático, mas percebe tanto de poesia como aquela banheira ali ao canto.

Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da melhor qualidade.

Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, excepto o estudante, estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objecto em que tocava ficasse capaz de exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.

Primeiro, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos à banheira onde se guardavam os jornais velhos.

— É mesmo verdade que não percebes nada de poesia? — perguntou.

— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde banheira, comparada com o merceeiro.

Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus, que chinfrineira! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.

— Agora posso pôr o estudante no seu lugar! — exclamou o duende.

E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja. Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções. O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música, que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.

— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do género. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.

E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira. Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível. Entretanto, contentava-se com o buraco da fechadura. Olhava através dele todas as noites, ali parado no patamar deserto, mesmo quando o vento do Outono começou a soprar pela claraboia, fazendo-o quase morrer de frio. Mas ele nem o sentia até a luz se apagar no quartinho do sótão e a música se calar a pouco e pouco, ficando apenas o uivar do vento. Brr! Então, sentia como estava gelado e descia sem fazer barulho para o seu canto secreto da loja, quente e confortável. Em breve viria a tigela de papas de aveia do Natal, com o seu grande pedaço de manteiga. Sim, o merceeiro era a escolha certa.

Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-noturno apitava: havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos alguma coisa... O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita foi buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor. E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracitos. A coisa mais preciosa da casa estava salva! Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro. Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha era clara. Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com mais calma, bem... — Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas de aveia. Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem com o merceeiro por causa das papas de aveia.

Hans Christian Andersen 

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por Maria Almira Soares às 22:48

Sábado, 22.03.14

LEITURAS ESQUECIDAS...

 

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por Maria Almira Soares às 12:09

Sexta-feira, 21.03.14

COMEÇANDO...

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por Maria Almira Soares às 18:43


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