Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
QUE BELO SERÃO!
Alfredo ia continuando a ler o jornal em voz alta para a sua mulher que, sentada no sofá habitual, fazia crochet. Tinham desligado a televisão, cansados das luzes e das cores e das vozes que começavam a aborrecê-los. Alfredo optara pelo preto e branco do jornal e Estela, a mulher, pedira-lhe que lesse em voz alta. Não era a primeira vez que tentavam esquecer a lenta batida do relógio, nas noites de inverno, procurando, no jornal, motivos para acaloradas trocas de palavras. A dada altura, interessando-se por uma notícia, a voz sonora do Alfredo anunciou:
— “Egito condena interferência iraniana após derrubada de Morsi”
Iria ler a notícia completa? Estaria, a sua mulher, interessada naquele assunto? Calou-se à espera de uma reação. Ora, nesse preciso momento, Estela, absorta no desenho de napperon que lhe servia de modelo, procurava não se enganar em nenhum dos pontos necessários. Tão abstraída estava que, do que ouvira, apenas captou o sentido das últimas palavras e, sentindo-se atingida no seu gosto pela correção linguística, imediatamente proclamou:
— Não é “derrubada de”, é derrubada por. Estes jornais!
Sempre se orgulhara do seu português impecável. Alfredo, que, em matéria linguística, nunca deixava de se submeter à opinião da mulher, num tom levemente interrogativo, releu em versão corrigida:
— Egito condena interferência iraniana após derrubada por Morsi?!
Mas Estela, arredado agora o crochet e considerando a frase completa, voltou à carga:
— Não, não está bem...
Alfredo, um tanto perplexo, ainda disse:
— Realmente! Derrubada por Morsi? Mas, então não foi o Morsi que foi derrubado?!
— Claro!
Na falta de outro entretenimento, começavam a animar-se com aquele princípio de discussão. Pareciam duas crianças competindo na busca da solução de um problema. Alfredo, mastigando a leitura a meia voz, repetia martelando as palavras:
— Egito... condena... interferência... iraniana... após...
Subitamente, Estela, saindo do seu mutismo reflexivo, quase gritou:
— Derrube!
— Derrubo o quê?! Enlouqueceste? E agora tratas-me por você?!
— Não, tu não derrubas nada. O problema é que já está resolvido.
— Está?! Qual é?
— Sabes o que é? É a ignorância e a mania de reproduzir literalmente os comunicados das agências. Se lá está “derrubada”, fica mesmo derrubada sem sequer pestanejarem. Passa cá o jornal.
E leu a última versão do título, finalmente corrigido graças ao seu sólido e resistente conhecimento da língua portuguesa:
— Egito condena interferência iraniana após derrube de Morsi, assim é que é!
— Ah! Esse derrube. Mas tens a certeza de que isso existe: o derrube?
— Oh, Alfredo, francamente! Tu não sabes? Nunca ouviste dizer o derrube do governo, por exemplo? Só no português do Brasil é que se diz derrubada. Provavelmente a notícia provinha de uma agência brasileira; assim vinha, assim ficou.
Sorriam. Pareciam agora ambos contentes por aquele serão, a princípio tão sonolento, finalmente ter ganho alguma animação.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.