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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quinta-feira, 16.01.14

TROCA DE PALAVRAS

 

A OPORTUNIDADE PERDIDA

 

    Sentado ao computador, Silvestre Gusmão alimentava o seu blogue com mais uma recensão de um livro, na ânsia de ganhar visibilidade, como caminho para realizar a ambição de se tornar colaborador de um jornal cultural. A certa altura, um súbito movimento no lado direito do ecrã chamou-lhe a atenção: era o aviso da chegada de um email.

— Ena! Um email do Jornal das Artes.

Não conseguindo resistir à curiosidade, foi imediatamente ver de que se tratava. Abriu-o:

“Caro Silvestre, soube que você esteve presente na sessão de entrega do prémio ao Nuno Serrão, que nós deixámos escapar. Estaria você disponível para escrever um pequeno apontamento de cerca de 500 palavras, a sair na próxima edição do JA?

Peço-lhe urgência na resposta.

Saudações.

Martins Sequeira”

 

— Se estou disponível? Claro que estou disponível! Será desta que consigo abrir caminho para...?

E lançou-se logo ao teclado.

 

RESPONDER:

“Caro Sequeira, pode contar comigo. Terá o texto ainda hoje.

Abraço.

Silvestre Gusmão”

 

Preparava-se para clicar no ENVIAR, mas suspendeu o gesto e voltou atrás. Acrescentou: “PS: Por favor, não altere em nada o que eu lhe mandar.” Só então clicou fazendo a mensagem deslizar a caminho do ciberespaço.

— Assim é melhor. Tenho de garantir a minha imagem, não é?

Logo a seguir, com toda a gana de quem deseja intensamente ver o seu nome no reputado Jornal das Artes,  pôs-se a escrever o seu relato-testemunho do badalado evento de que o famoso escritor Nuno Serrão fora a estrela. Contente consigo próprio, leu e releu a sua produção, achando-a perfeita e capaz de espicaçar os leitores. Tinha apimentado a descrição do ambiente com algumas insinuações maliciosas. Se aquilo desse em polémica, é que era bom! Sorrindo de algumas passagens do texto e, no auge da autossatisfação, apressou-se a enviá-lo ao Sequeira. Poderia estar ali o ponto de partida para outros voos... — sonhava.

Lá mais para o fim do dia, resolveu espreitar o correio. Talvez o Sequeira lhe tivesse mandado algum aplauso pela qualidade do seu apontamento. Nem de propósito, lá estava um email do JA. Abriu:

“ Caro Silvestre, não posso atender completamente o seu pedido. Como compreenderá, este parágrafo tem de ser alterado: ‘Nem todas as figuras públicas presentes congratularam o premiado escritor.’

Por respeito para com a instância autoral que você tanto parece prezar, peço-lhe que seja você a corrigir. Sequeira”

 

— Alterar? Eu a corrigir? Mas a corrigir o quê?

 

RESPONDER:

“Sequeira, por favor, explique-se. Não estou a ver o seu ponto. Silvestre”

 

CORREIO RECEBIDO:

“Não está a ver? ‘Congratularam o premiado’”!!!!!

 

RESPONDER:

“Ah, isso? Não se preocupe. Se houver reações, eu assumo a responsabilidade. “

 

CORREIO RECEBIDO:

“A questão não é essa, Silvestre! A questão é de português. Não está a ver?”

 

RESPONDER:

“Ouça, se você não gosta da palavra congratular, eu gosto. Fica assim. Não mudo.”

 

CORREIO RECEBIDO:

“Não muda?! Você quer que depois lhe mandem palmatoadas pelo correio? Olhe que quem assina o texto também assina os erros.”

 

RESPONDER:

“Erros? Mas quais erros?!”

 

CORREIO RECEBIDO:

“Olhe, Silvestre, eu quis dar-lhe a oportunidade de considerar isto um lapso. Mas já que você insiste, concluo que se trata de ignorância mesmo. Um erro de palmatória. Ouça: em bom português, ninguém congratula ninguém; as pessoas congratulam-se com os sucessos dos outros ou não. Ou seja, nem todas as figuras públicas se congratularam com o sucesso do Nuno Serrão. Ou seja, ‘manifestaram a sua adesão à alegria do festejado’. Mas cheira-me que o que você quereria dizer era que nem todas as figuras públicas felicitaram o premiado.

Percebeu, agora, qual é o ponto?”

 

RESPONDER:

“Já respondo.”

 

Telefonou a uma professora de português sua conhecida. A calinada era mesmo real. Precisava de se recompor desta embaçadela. Até corara! Ser apanhado assim pelo Sequeira! Que fazer?

 

RESPONDER:

“Sequeira, não gostei da sua atitude. Retiro o artigo. Silvestre”

 

E ficou a remoer:  a vaidade ferida afastara-o de uma bela oportunidade.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Maria Almira Soares às 13:22


3 comentários

De css a 16.01.2014 às 18:57

Adorei. Genial.

De Maria Almira Soares a 17.01.2014 às 12:51

Pois, então, congratulemo-nos!

De Isaltina Martins a 08.09.2018 às 20:50

Muito bom. Parabéns, Almira. É esse um dos erros que está sempre a ferir os meus ouvidos, mas parece que se está a generalizar, já o ouvi a gente muito responsável. Ai o conhecimento da nossa língua! E depois dizem que é evolução.

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