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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
TER E MANTER
Sentados à mesa do café, o Gomes e o Ferreira, dois velhos amigos, aproveitam para pôr a conversa em dia.
Muito gosta o Ferreira de se pôr a contar isto e aquilo, coisas que se passam e de que ele vai sabendo. Já o Gomes, perante os entusiasmos narrativos do amigo, diverte-se a fazer os seus comentários, mais ácidos ou mais risonhos, brincando, troçando das calinadas do Ferreira, dando-lhe lições de gramática, moendo-lhe a paciência. Enfim, um chato!
Não deve faltar muito para que a conversa degenere em discussão. Mas não nos preocupemos, porque, como sempre, há de acabar bem.
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— Ó Gomes, você nem imagina o que me disse o Figueiredo, um destes dias! Que se a situação se mantesse, acabaria por ter de fechar a loja!
— Ah! Ele disse isso? Esse gajo! Olhe, se tesse falado comigo, eu cá....
— Tesse?!!! Qual Tesse? Ó Gomes, não brinque com coisas sérias. Não invente.
— Acalme-se, você tem razão, homem: o Tesse (ah, ah, ah) não existe. Mas, ouça lá, você não disse mantesse? Você não disse se a situação se mantesse?
— Disse. Acho que disse. E qual é o problema?
— Então, se você inventou o mantesse, eu também posso inventar o tesse (ah, ah, ah). Está a ver?
— Não, não estou a ver mesmo nada... Nem a ver nem a achar graça.
— Ah, não está a ver. Bem, se não está a ver, pelo menos ouça: pois claro que eu não devia ter dito tesse falado, mas tivesse falado.
— E então? Porque é que você não disse tivesse? Para se fazer engraçado, foi? Olhe que não estou a ver qual é a piada.
— Não é piada, é calinada.
— Você hoje está mesmo chato. Vá lá, desembuche, que é que o seu tesse tem a ver com o meu mantesse?
— Olhe, tem a ver que nem tesse nem mantesse existem. É isso que tem a ver.
— Mantesse não existe?! Essa é boa! Tenha mas é juízo. Então como é? Diga lá, ó sabe tudo!
— Digo, digo. Acaba-se já a discussão: mantesse está errado; o correto é dizer mantivesse. Inventei o tesse para você sentir os ouvidos arrepiados como eu senti, quando você disse mantesse.
— Que trapalhada! E como é que você acha que é, como é? Repita, lá...
— Não acho, tenho a certeza: se a situação se mantivesse...
— Mantivesse! Mas, por que raio, é que não pode ser mantesse? É muito mais fácil.
— Pense, Ferreira. Pense, que eu não duro sempre: se do verbo ter, você não diz tesse, mas tivesse; do verbo manter, não diz mantesse, mas mantivesse e ainda...
— Você e a sua mania da gramática! Deram-lha às colheres em pequenino, foi? Pare lá com essa lengalenga. Já percebi onde quer chegar.
— Pois claro que percebeu! É fácil. Todos os...
— Chega, pá! Olhe que você é mesmo chato! Mas, vá lá, aceito o seu mantivesse. Tem lógica. Ninguém gosta de dar pontapés na gramática. E eu muito menos.
— Bravo! Se eu não tivesse o que fazer ao dinheiro, até lhe pagava agora uma bica, ó Ferreira!
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