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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A POPA E A POUPA
Lá iam os dois a caminho da escola: o Mário e o Jorge. Andando e conversando. Era um hábito seu, este de se fazerem companhia durante o trajeto entre a casa e a escola. Quem não os conhecesse bem ficaria certamente curioso sobre as razões da sua amizade, pois a sua aparência não fazia supor nenhuma proximidade: o Jorge, alto e magro, andava sempre vestido e penteado de um modo atrevido e inovador; o Mário, baixo e gordinho, era um modelo de menino alinhadinho, desde o cabelo até às botas. Enfim, o Jorge parecia um rapaz todo prafrentex e o Mário um autêntico betinho. Mas, de facto, davam-se bastante bem, apesar de tão diferentes exteriormente. E, juntos, divertiam-se bastante. Ah, mas havia ainda outra diferença: o Jorge era muito bom em Português, sua disciplina preferida; já o Mário era um especialista em Ciências Naturais e andava sempre a farejar a presença de algo novo na Natureza, para pesquisar, analisar e organizar mais uma das suas já famosas fichas.
Ei-los em plena expedição comandada pelo Mário: vai mostrar ao amigo e fotografar um pássaro bem esquisito (dizia ele). Descobriu-o no campo, empoleirado num arbusto. E têm sorte: lá está o pássaro. O Jorge, depois de o mirar e remirar, concorda:
— É bem esquisito! Parece ter uma moita de penas no alto da cabeça! Sabes como se chama?
— Não. Mas isso resolve-se facilmente.
E o Mário saca da máquina fotográfica e, zás, fotografa o pássaro.
— Quando chegarmos a minha casa, passamos esta imagem para o computador e, depois, é só pô-la na pesquisa do Google.
Ficam ainda algum tempo por ali a fazer as suas observações e, às tantas, os olhos do Mário começam a balançar: da cabeça do Jorge para a cabeça do pássaro; da cabeça do pássaro para a cabeça do Jorge e:
— Pensando bem, se calhar, chama-se Jorge...
— ‘Tás parvo?
— Que queres? Tu, com essa poupa no cabelo, pareces mesmo...
E desata a rir. Mas o Jorge, que não acha graça nenhuma, resolve dar por terminada a expedição:
—Vamos para tua casa.
Já em casa, ligado o computador, num abrir e fechar de olhos ficam a saber que o espécime descoberto se chama poupa e o Mário não resiste:
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Eu não te disse?
— Não me disseste o quê?
— Não se chama Jorge, mas quase. É poupa! Como a poupa que tu tens no cabelo! Ah! Ah! Ah!
— Eh, pá! Não gozes. Para lá com isso.
Mas o Mário está imparável e, sorrateiramente, resolve acrescentar na sua ficha sobre a poupa uma observação muito especial.
Observação: para além de pousar nos arbustos, também pode ser visto no cabelo de um rapaz chamado Jorge.
Depois, vira-se para o Jorge e, com um ar malandreco:
— Lê lá isto para veres se o português está correto.
Muito inocentemente, o Jorge põe-se a ler a ficha, emenda um ou outro errito, mas... quando chega àquela observação...
— Apaga já isto, pá!
— Calma. Não te chateies. Estava só a brincar. Claro que isso é para apagar.
E, sem perder a malandrice risonha do olhar, o Mário finge estar a tratar do assunto, mas...
— Pronto, já está. Podes confirmar.
Correção: a poupa do cabelo do Jorge é demasiado grande para ser um pássaro; o Jorge tem na cabeça a poupa de um navio.
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
— Afinal, sempre achas graça.
— Graça? Desta vez quem se vai chatear és tu.
— Chatear-me?! Porquê?
— Porque quiseste armar-te em piadético, mas quem está a achar graça ao teu erro sou eu.
— Qual erro? Não estou a ver erro nenhum.
— Oh, Mário, poupa-me! Os navios não têm poupa, têm popa.
— ‘Tás a gozar! Ainda noutro dia li na internet que o couraçado Bismarck foi atingido na poupa por um torpedo...
— E despenteou-o? Ah, ah, ah! Na internet!... Há cada calinada na internet! Tu de pássaros podes saber muito, mas, em português, ninguém me bate. Se eu digo que a parte de trás do navio é a popa é porque é a popa. Os navios não têm poupas! Nem de cabelo nem de pássaro.
E eis que o Mário se rende à sabedoria linguística do amigo. No fundo, está-lhe agradecido. É que não tem mesmo graça nenhuma fazer descobertas, mas depois registá-las em mau português. Mesmo que seja a brincar...
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